ISSN 1982-1026

Boletim de História e Filosofia da Biologia

Volume 5, número 1

Março de 2011

 

Publicado pela Associação Brasileira de

Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)

http://www.abfhib.org

 

  Sumário:

1.    Encontro de História e Filosofia da Biologia 2011

2.    “Os quatro whiggismos de Robert Maxwell Young”, por Nelio Bizzo

3.    Bases de dados para busca bibliográfica em História da Ciência

4.    Teses e dissertações recentes sobre história e filosofia da Biologia

5.    Traduções de textos primários de história da Biologia: “Lazzaro Spallanzani e os fósseis da ilha grega de Citera", por Maria Elice Brzezinski Prestes

 

1. Encontro de História e filosofia da Biologia 2011

 

 

O Encontro de História e Filosofia da Biologia 2011, promovido pela ABFHiB, será realizado de 10 a 12 de agosto de 2011, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Bauru.

Está confirmada a participação do seguinte conferencista internacional para este Encontro:

* Prof. François Duchesneau, do Departamento de Filosofia, Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Montreal: "Genesis and mutations of the concept of organism".

As inscrições de trabalhos para apresentação devem ser feitas mediante o envio do título da apresentação acompanhado de um resumo ampliado (aproximadamente 1.000 palavras, além da bibliografia utilizada) e de um resumo curto (entre 100 e 200 palavras) para a Comissão Organizadora do Encontro, no endereço: ehfb2011@abfhib.org.

 

 

O prazo para enviar inscrições de trabalhos é até o dia 15 de abril de 2011. Podem ser submetidos trabalhos para apresentação oral ou para apresentação em formato de poster.

Podem ser encontradas informações mais detalhadas sobre o Encontro de História e Filosofia da Biologia no site da ABFHiB, neste endereço: http://www.abfhib.org/Encontro.html.

A figura escolhida para os cartazes e outros materiais deste evento é uma imagem do manuscrito Cod. Pal. germ. 300 da obra "Das Buch der Natur", de Konrad von Megenberg (1309-1374).

 

2. os quatro whigismos de robert maxwell young

 

 

Nelio Bizzo
Professor Titular de Metodologia de Ensino de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo
e Visiting Professor da Università Degli Studi di Verona.

E-mail: bizzo@usp.br 

 

I. SITUANDO O PROBLEMA

    Uma mesa-redonda sobre whiggismo, em um encontro como a reunião anual da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia, foi pensada como uma resposta a uma questão básica: há sentido em traduzir esse termo para o português? Nada melhor do que reunir algumas pessoas para debater o tema, com visões pessoais sobre a questão. De minha parte, creio que a contextualização no darwinismo seja particularmente interessante, uma vez que pensamos a questão a partir do universo biológico.

    Ao analisar o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento da sociedade, há diversas tradições historiográficas e métodos de trabalho, mas essa diversidade não pode ser entendida como simples expressão de “vícios”. Diferentes escolas de pensamento têm ênfases em aspectos variáveis do trabalho historiográfico. No entanto, esse trabalho tem resultado questionável quando incorre em certos procedimentos que podem comprometer sua credibilidade, do ponto de vista da comunidade científica de referência. Por exemplo, ao tomar por base fontes históricas não confiáveis, o historiador se arrisca a chegar a resultados inaceitáveis, incorrendo naquilo que é chamado “vício”, um procedimento metodológico que compromete a credibilidade do resultado do trabalho historiográfico. Entre eles, o anacronismo é apontado como vício metodológico, mesmo se se reconheça como difícil de escapar no contexto da História da Ciência.

    Por exemplo, ao discutir a tradução precisa de certos termos encontrados em trabalhos originais do século XIX, é comum atribuir um conceito moderno ao conceito original. Trata-se de uma óbvia projeção do presente em direção ao passado, tipicamente um anacronismo. Por que o trabalho do historiador é tão susceptível ao anacronismo, que no contexto anglófono se consagrou com a expressão "whiggismo"? O termo não existe no vernáculo. No entanto, qualquer tradução distorceria seu significado. O termo se refere à frase "A interpretação whig da história da ciência", uma provável alusão ao livro de Herbert Butterfield, "The Whig Interpretation of History" (1931), onde é denunciada a forma de encarar os acontecimentos passados apenas em função de sua contribuição para o estabelecimento do sistema político britânico sob a hegemonia dos whigs (em oposição aos tories, mais conservadores). Foi criada uma saga de heróis whigs e vilões tories. No campo específico da História da Ciência o whiggismo tem assumido a forma de reconstruções arbitrárias nas quais despontam extremos identificados como “vilões”, ou mesmo “tolos”, na forma de cientistas que defendiam posições diferentes das aceitas atualmente, ou, de outra forma, “heróis” ou “sábios”, que teriam antecipado as teorias e a maneira contemporânea de entender determinados fenômenos.

II. HERÓIS E VILÕES NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA

    O trabalho de Robert Maxwell Young se ateve ao estudo da história do darwinismo de uma maneira muito particular, adotando um referencial marxista (Young, 1985a). Isso o levou conferir ênfase a certos aspectos do desenvolvimento das teorias de Darwin, aplicando o conceito marxista de ideologia, como mecanismo de re-interpretação da realidade, a partir de imagens projetivas das relações sociais e econômicas. Isso não quer dizer que ele estivesse procurando fazer qualquer tipo de “denúncia” de suposta “influência”, de natureza social, que teria “contaminado” parcial ou inteiramente o conjunto de teorias derivadas desse esforço de pesquisa.

    Na verdade, dentro da perspectiva marxista, em geral, ou na de Young, em particular, não faz sentido a difundida crença em um “darwinismo biológico” ideologicamente neutro e distanciado das disputas que ocorriam no seio do contexto social, e uma suposta corrupção dele, o chamado “darwinismo social”. Este avançaria a linha da prudência ao aplicar as teorias darwinistas “às raças humanas”, o que teria dado origem a um darwinismo “impuro”, ideologicamente comprometido, que em nada se relacionaria com os formuladores originais no campo biológico. Essa forma de estampar as aplicações do darwinismo ao contexto humano é muito difundida e popular até mesmo na tradição das ciências humanas. Alguns autores localizam na tradição determinista do século XIX, em especial no determinismo geográfico, a origem do “darwinismo social” como verdadeira contrapartida (Schwarcz, 1993, p. 58). Embora haja muitas referências a “desvios do perfil originalmente esboçado por Charles Darwin”, que incluiriam a sociologia de Herbert Spencer, a “ciência histórica” de Henry Thomas Buckle e outros (ibid., p. 56), diversos autores falam de “corrupções” do darwinismo, em numerosas sínteses e reconstruções históricas das ciências, em especial as dedicadas ao grande público e, como regra, no contexto do ensino da ciência. Neste campo particular, muito se argumentou sobre a forma distorcida de sua apresentação para finalidades educacionais, que resultaria em “pseudo-história” e “pseudo-ciência” (Allchin, 2004).

    A tradição da biologia escolar, sobretudo norte-americana, se empolgou com certas formas de reconstrução histórica do darwinismo, em especial a de oposição entre Darwin e Lamarck, como uma espécie de “história darwinista do darwinismo” (Bizzo & Molina, 2004). Pretende-se aqui explorar brevemente uma escola de pensamento que tem tido reduzida penetração na área do ensino de biologia, que é a tradição marxista representada por Robert Maxwell Young. No passado, essa tendência, sobretudo em estudos de História Social da Ciência, foi frequentemente confundida com a perspectiva externalista, na qual a origem das tensões transformadoras dos paradigmas científicos é buscada fora do estrito âmbito da ciência. O questionamento da tradição internalista, sobretudo em meados da década de 1960, teve, é certo, um forte componente marxista, mas não se pode hoje afirmar que ele tenha subsumido inteiramente as perspectivas externalistas, nem tampouco que ele tenha se esgotado com elas.

    De fato, embora a importância da ciência para o desenvolvimento da sociedade tenha sido crescentemente relativizada, a tradição marxista lhe tem dedicado atenção de maneira constante, desde Marx e Engels, principalmente por ver na base material da produção um componente essencial para a compreensão da transformação histórica da sociedade (Porter, 1990).

    Por que o trabalho do historiador é tão susceptível ao anacronismo, que no contexto anglófono se consagrou com a expressão “whiggismo”? O termo não existe em nosso vernáculo. No entanto, qualquer tradução distorceria seu significado. O termo se refere à frase “A interpretação whig da história da ciência”, uma provável alusão ao livro de Herbert Butterfield, The Whig Interpretation of History (1931), onde é denunciada a forma de encarar os acontecimentos passados apenas em função de sua contribuição para o estabelecimento do sistema político britânico sob a hegemonia dos whigs (em oposição aos tories, mais conservadores).

    A historiografia whig se baseia em uma saga de heróis whigs e vilões tories, onde estes últimos, conservadores do ponto de vista moral e econômico, grandes proprietários de terras, avessos à globalização da economia, se opunham à importação de produtos agrícolas, defendendo uma reserva de mercado para os produtos de suas terras. Os whigs, por seu lado, liberais no sentido econômico e avançados no sentido moral, defendiam o fim das barreiras do comércio mundial, com o grande argumento de que a importação de trigo mais barato baixaria o preço do pão. Não é difícil imaginar o forte apelo popular das teses liberais no século XIX.

III. OS WHIGGISMOS DE YOUNG

    No contexto da história da ciência, Young evidencia vários tipos de whiggismo. O “whiggismo primário” que parece ser a tendência de traçar uma linha reta entre passado e presente, sem nenhum espaço para as questões candentes de cada período, tampouco para os “perdedores da história”. No contexto da história da biologia, pode-se citar, por exemplo, a forma transfigurada pela qual se apresenta Lamarck, ou mesmo a completa omissão das bases da geologia moderna, referida, sobretudo, a cientistas italianos do século XVIII. A geologia formava uma base sólida na formulação evolucionista e é impossível entender como ela se desenvolveu sem considerar a maneira como a chamada “geologia moderna” se desenvolvia. A simples referência à obra de Charles Lyell parece ser suficiente para exprimir a existência de algum antecedente; no entanto, como frequentemente ela é acompanhada da declarada aversão do geólogo escocês às teses de Darwin (“mostre-me um órgão novo”, costumaria ele questionar Darwin, reafirmando a idéia de um plano geral de criação), não é difícil perceber que há pouco estímulo a ir além de Lyell, ou mesmo do que fora feito no século anterior, para entender a teorização darwinista. Os cientistas-autores das teorias aceitas atualmente se bastariam, por assim dizer. Eles, e apenas eles e parte de suas obras, seriam suficientes para compreender a ciência atual.

    Young apenas reafirma, assim, uma crítica frequente, desde Thomas Kuhn, da maneira de construir tradições científicas. A cada revolução científica parecer ser necessária uma nova história, que possa explicar a maneira pela qual se chegou ao corpo de conhecimento aceito em determinado momento. Com isso, além de “linhas retas” são construídas histórias cumulativas, “bancárias” na terminologia de Freire, que ganhariam a forma de pilhas de tijolos, na conhecida imagem traçada por Kuhn. Um muro só pode ser construído de baixo para cima – nunca ao contrário!

    O “whiggismo secundário” se apresenta como uma importante concessão à forma anterior, e mais comum, de whiggismo. Reconhecem-se formas não aceitas atualmente de teorias científicas, depondo contra a visão de uma obra monolítica e triunfal. Mas essas formas são vistas, elas mesmas, como etapas anteriores da formulação aceita atualmente, construindo-se, assim, uma divisão entre uma fase “imatura” do cientista, contrastando com sua fase “madura”. É forçoso conceber as “concepções imaturas” de um cientista como estágio obrigatório antecedendo sua “maturidade científica”. Obviamente, as “concepções maduras” se constituem apenas naquelas que o historiador seleciona como válidas na atualidade. Além disso, nos diz Young, existe sempre o risco de rotular as teorias superadas de um cientista admirado por nós como “concepção imatura” e, assim, esquecê-las. Essa “maturidade” tem forte apelo cronológico, sendo comum a referência ao “jovem Darwin”, “jovem Einstein” etc., como sendo o autor dos pensamentos “imaturos”.

    Essa maneira de conceber a diversidade de pensamentos do cientista frequentemente conduz a equívocos importantes. Por exemplo, o “jovem Darwin” que teorizou sobre os prejuízos da vacinação nas populações humanas, tinha, na verdade, 62 anos, enquanto a expressão de horror diante da visão de um grupo de fueguinos “selvagens”, ele próprio atribuiu a um Darwin que ainda não tinha completado 24 anos! O Darwin “lamarckista”, que explicitamente teorizava sobre o efeito do uso e desuso das partes e de seus efeitos hereditários, por meio da Teoria da Pangênese, era nove anos mais velho do que o Darwin de Origem das Espécies. De fato, o livro Variations of Animals and Plants Under Domestication foi publicado em 1868, enquanto o Origin of Species apareceu em 1859.

    Poder-se-ia ainda traçar um “whiggismo terciário”, no qual os cientistas criadores de concepções alternativas desapareceriam junto com as “concepções imaturas” do cientista. Assim, reconhece-se uma diversidade de pensadores e se enfrenta a crítica de personalismo na historiografia, mas acaba-se por alinhar todos os pensadores a uma fase imatura, vista como primitiva, do próprio cientista. Isso fica muito claro em certas descrições da elaboração das teorias darwinianas, que admitem uma vertente “lamarckista”, mas transmitem a idéia de que ela teria sucumbido junto com as visões do próprio Lamarck.

    Permito-me propor um “whiggismo” adicional, que parece ter escapado a Young. Como certos pensadores defendem as idéias de nosso cientista e, por isso, passam a ser considerados inconvenientes, difunde-se a notícia de que, apesar de sua formação intelectual e do convívio direto com o mestre, eles simplesmente não o entenderam. Desta forma, os “defensores” só poderiam ser levados a sério quando não oferecessem oportunidades para crítica do mestre.

    O caso de Thomas Huxley é bastante ilustrativo. Apesar de seu sugestivo apelido de “buldogue de Darwin”, muitos especialistas (como Ernst Mayr) afirmaram que ele jamais compreendeu Darwin. Este é o caso de sua defesa intransigente da libertação dos escravos nos Estados Unidos, à época da guerra civil. É muito comum ouvir que Darwin se opunha fortemente ao escravagismo, alinhando-se não apenas com os valores de sua família, mas de sua própria classe social. De fato, os whigs tinham conseguido aprovar severas leis de restrição ao comércio de escravos, inclusive em suas colônias. Embora essa seja uma perspectiva muito comum, o mesmo não pode ser dito das justificativas desse posicionamento. Embora o embasamento econômico para a defesa do fim do escravismo não costume incluir questões biológicas, evolucionistas como Huxley se manifestaram muito claramente a esse respeito. Em um conhecido texto intitulado “Emancipation: Black and White”, originalmente publicado em 1865, Huxley aborda explicitamente o tema da abolição da escravidão nos Estados Unidos, defendendo-a. No entanto, sua justificativa traz um racismo abominável, difícil de reproduzir mesmo em uma rápida fala de mesa-redonda como esta. Em suma, Huxley apresenta os negros como uma raça inferior, com menor capacidade cognitiva, o que os condenaria a “naturalmente” ocupar os estratos sociais inferiores; a escravidão transmitiria a “falsa” impressão de que sua condição social inferior seria “artificialmente” mantida pela imposição da condição de escravos. Melhor seria, então, abolir a escravatura, de maneira a expor abertamente a condição “inferior” conferida pela “natureza “ao negro, referido nas palavras de Huxley como “nosso parente prognata”, com uma mandíbula avantajada, mas numa sociedade em que os conflitos não mais se resolvem pela capacidade de morder nacos de carne. Esse racismo odioso atestaria a “total ignorância” do discípulo em relação ao pensamento do mestre. Um respeitado “Darwin Scholar”, ao ser questionado sobre esse vínculo inconveniente, respondeu: “Todos eram racistas...”, o que pode não resolver a questão. Na verdade, mesmo que se reconheça como anacronismo a visão de que os cientistas do passado devam ser vistos como “politicamente corretos” do ponto de vista da atualidade, é forçoso admitir que, em sua época, havia posições mais tolerantes (como James C. Prichard, 1786-1848) e menos tolerantes (como William R. Greg, 1809-1881), como será visto adiante. Ambos foram fontes bibliográficas importantes para Darwin, que parece ter tomado do primeiro a idéia de seleção sexual aplicada ao caso humano e, do segundo, uma visão social muito restrita e determinista.

    Outro personagem de relevo que se inscreveria no rol dos que nunca compreenderam Darwin certamente seria Leonard Darwin, seu filho. Como líder político, dedicou-se à defesa da eugenia, sempre atribuindo sua motivação à vontade de seu pai, de fazer sua teoria ser útil à humanidade. Como veremos adiante, sua comprometedora dedicatória de The need for eugenic reform (1926) revela sua suposta “incompreensão” da obra do pai.

IV. CONCLUSÃO: A FACE OCULTA DA CIÊNCIA

    A posição de Young, de certa forma inovadora, emergia, já em 1969, de uma tese comentando a influência de Malthus sobre Darwin, como algo muito mais relativo do que se pensava. Segundo ele, o impacto da lei da população, cunhada em 1798 junto com a expressão “struggle for existence”, na obra de Darwin, é mais aparente do que real. Uniria os dois pensadores, sobretudo o ideário burguês, as categorias sociais compartilhadas pelos teorizantes de tudo o que viam a sua volta, fossem plantas sedentas no deserto ou operários doentes nas fábricas. Certas afirmações, mesmo se apresentadas por renomados cientistas como resultantes de conclusões científicas, serão vistas por Young como simples exercícios ideológicos, como por exemplo: “os processos pelos quais as sociedades humanas evoluem são, desse modo, em princípio, os mesmos que atuaram nos estágios pré-humanos da evolução”. Trata-se simplesmente de uma máxima de Cyril Dean Darlington (1903-1981), o biólogo inglês que descobriu o crossing-over e o papel das mutações cromossômicas na evolução, mas que também defendeu idéias eugênicas e “naturalizou” diversas construções sociais, em especial as ligadas à ideia de raça (Young, 1969). Young insiste naquilo que o darwinismo está sendo, sua repercussão social, seu efeito concreto sobre a forma como as pessoas percebem o mundo circundante. Não tem tanta importância o que o darwinismo pretende ser e, muito menos, o que seus fundadores originais queriam com ele.

    Por esta razão, Young ao dar pouco valor aos apelos dos darwinistas e do próprio Darwin, sobre o caráter metafórico de certas expressões, pretende estudar as formas como semelhantes metáforas são vistas e interpretadas e suas repercussões sociais concretas. A “luta pela existência”, a “sobrevivência do mais apto” e tantas outras metáforas de Darwin, não foram entendidas como tal, no contexto social onde emergiram. Preocupa-o também o uso do termo “trabalho” para designar qualquer ação realizada por qualquer ser vivo, mais uma dessas metáforas que inundam os textos de sociobiologia. Desse modo, escreveu “Darwin's metaphor: does nature select?” (1971), texto que integra a coletânea de textos Darwins's Metaphor: Nature's place in Victorian culture (Young, 1985b).

    As passagens presentes no Descent of Man sofreram meticuloso estudo de Young para mostrar que as mesmas “leis” vistas por Darwin influindo nos seres vivos, eram as mesmas atuando sobre o ser humano. Young (1985) reproduz, por exemplo, o seguinte trecho de Darwin, que ele diz estar baseado em trabalhos de William R. Greg, Alfred R. Wallace (1823-1913) e Francis Galton (1822-1911):

Nos selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; os que sobrevivem geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, homens civilizados, por outro lado, fazemos de tudo para impossibilitar o processo de eliminação, construímos asilos para os imbecis, inválidos e doentes, instituímos leis para os pobres, e nossos médicos dão tudo de si para salvar a vida de qualquer um até o último momento. É difícil acreditar que a vacinação tenha salvado milhares que, por terem uma constituição fraca, teriam morrido de varíola. Assim, proliferam os membros fracos das sociedades civilizadas. Ninguém que tenha se dedicado à criação de animais domésticos duvidará que isso é absolutamente prejudicial para a raça humana. É surpreendente ver como os cuidados excessivos, ou incorretamente aplicados, conduzem rapidamente à degeneração de uma raça doméstica, e ninguém, exceto o homem, é tão ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais procriem. (Darwin, [1871, p. 168] 1982, p. 161)

    Nas páginas seguintes, em outros trechos reproduzidos, um tanto quanto surpreendentes, Darwin defende o acúmulo de capital, a necessidade de diferentes classes sociais, a explicação do progresso nos Estados Unidos (“apenas os mais bravos foram para lá”) etc. O artigo de William Greg, mencionado no rodapé por Darwin, fora publicado em 1868, e começava por citar o argumento de Wallace, publicado em um controvertido artigo de 1864. Ele terminava por alertar para o efeito “perverso” dos avanços da filantropia, da assistência social e da medicina que, ao prolongar a vida dos doentes, eternizava a doença. Young nos desafia a encontrar qualquer tipo de metáfora na citação acima.

    Embora os pais não possam ser diretamente culpados pelo pensamento, palavras e ações dos filhos, em particular quando se trata de algo reprovável, um exemplo ilustrativo parece escapar aos olhos de Young. Leonard Darwin, filho de Charles e Emma, como presidente da Sociedade Britânica de Eugenia, além de opinar sobre a legislação municipal, em especial, quanto às leis de amparo aos pobres (propondo sua extinção), escreveu um livro a respeito da necessidade da reforma eugênica.

    No capítulo dedicado à proposta de “Eliminação dos menos adaptados” (XXI), Leonard Darwin escreveu:

Se a raça está se deteriorando agora devido à multiplicação dos menos adaptados, e se, como é certo, esforços adicionais estão continuamente sendo feitos para diminuir a taxa de mortalidade dos tipos inferiores, a velocidade dessa deterioração está provavelmente aumentando, e a necessidade de ação é cada dia maior. [...] seria benéfico para a raça se todas as famílias que vivem de forma incivilizada, e aumentando em número apesar de todos os avisos contra isso, fossem segregadas, a menos que e enquanto o pai não consentisse em ser esterilizado, quando então a assistência pública poderia ser dada ou renovada.  (L. Darwin, 1926, pp. 388-390)

    O capítulo seguinte, “A multiplicação dos mais bem adaptados”, recomendava medidas inversas. Os menos necessitados em limitar o número de filhos, reconhecia Leonard, eram os que mais o faziam, sendo o contrário, igualmente verdadeiro. Porém, a dedicatória do livro do filho de Charles Darwin trazia revelação não menos comprometedora para os oponentes das teses de Young:

Dedicado à memória de meu pai, pois se eu não acreditasse que fosse seu desejo que eu desse tal contribuição para que o trabalho de sua vida fosse colocado a serviço da humanidade eu nunca teria sido levado a escrever este livro. (L. Darwin, 1926, p. v)

    A eugenia teve penetração em diversos estados nacionais, depois da morte de Charles Darwin, que não poderia ser considerado responsável por isso – o que seria outro anacronismo. No entanto, a distinção formal entre um darwinismo estritamente biológico, “puro” e “genuíno”, e um darwinismo social, “impuro” e “degenerado” por seguidores que nada entendiam da obra do mestre se revela como uma modalidade de whiggismo. Em conclusão, Young, mostra nas inúmeras passagens nos escritos de Darwin pai e filho e mesmo de Huxley, a inexistência de distinção clara entre darwinismo e darwinismo-social, da mesma forma que ciência e ideologia são indissociáveis. Essa dualidade seria, na visão de Young, a chave para entender a contínua demanda por versões whig da ciência.

    Finalmente, sobre a questão vernacular, penso que deveríamos utilizar a grafia “whigismo”, mantendo indicação facilmente reconhecível da origem do nome (particularmente o “wh”), mas sem outras concessões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLCHIN, Douglas. Pseudohistory and pseudoscience. Science & Education, 13: 179-195, 2004.

BIZZO, Nelio; MOLINA, Adela. El mito darwinista en el aula de clase: un análisis de fuentes de información al gran público. Ciência & Educação, 10 (3): 401-416, 2004.

DARWIN, Charles. Origem do homem [1871]. São Paulo: Hemus, 1982.

DARWIN, Leonard. The need for eugenic reform. London: John Murray, 1926.

DESMOND, Adrian. Huxley: From Devil’s Disciple to Evolution High Priest. Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1997.

HUXLEY, Thomas Henry. Emancipation: black and white [1865]. Pp. 66-75, in: Science and Education, Essays. Akron, Ohio: The Werner Co. 1893.

PORTER, Roy. The history of Science and the History of Society. Pp. 32-46, in: OLBY, Robert. C., G. N. CANTOR, J. R. R CHRISTIE and M. J. S. HODGE. Companion to the History of Modern Science. London and N.Y.: Routledge, 1990.

SCHWARCZ, Lilia M. O Espetáculo das Raças: Instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

YOUNG, Robert Maxwell. Darwinism IS social. Pp. 609-638, in: Kohn, David (ed.). The Darwinian Heritage. Princeton: Princeton University Press, 1985a. Disponível em: <http://www.human-nature.com/rmyoung/ papers/paper60.html>.

______. Darwins's Metaphor: Nature's place in Victorian culture. Cambridge: University of Cambridge Press, 1985b. Disponível em: <http://www.human-nature.com/dm/dar.html> Acesso em 15 março 2011.

 

______. Understanding It All: Review of C. D. Darlington, The Evolution of Man and Society. New Statesman, 26 September 1969. Disponível em: <http://www.human-nature.com/rmyoung/papers/paper86h.html>. Acesso em 15 março 2011.

 

  

 

 

 

Citação bibliográfica deste artigo:

BIZZO, Nelio. Os quatro whiggismos de Robert Maxwell Young. Boletim de História e Filosofia da Biologia 5 (1): 2-8, mar. 2011. Versão online disponível em: <http://www.abfhib.org/Boletim/Boletim-HFB-05-n1-Mar-2011.pdf>. Acesso em dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]

 

 

 

3. BASE DE DADOS PARA BUSCA BIBLIOGRÁFICA EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Roberto de Andrade Martins

Universidade Estadual da Paraíba

E-mail: roberto.andrade.martins@gmail.com

Uma parte da base de dados da Isis está disponível de graça para todos os interessados. Cobre o período de 2000 a 2009.

Pode-se acessar esses dados pelo World Cat: http://www.worldcat.org/

Para encontrar as informações da base de dados da Isis dentro do World Cat, é necessário fazer um truque: na busca, incluir a expressão "xisi2" (sem colocar aspas). Por exemplo: pode-se fazer uma busca com as palavras Darwin Wallace xisi2. Se não colocar xisi2, aparecem muitos resultados que não têm relação com história das ciências.

 

 

4. Teses recentes sobre história e filosofia da biologia

ROCHA, Simone. Eugenia no Brasil: análise do discurso “científico” no Boletim de Eugenia: 1929-1933. Tese (Doutorado em História da Ciência). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo, SP, 2010. Orientadora: Lilian Al-Chueyr Pereira Martins. Defendida em 20/12/2010.
    Resumo. Esta pesquisa se refere à eugenia no Brasil. O objetivo é discutir o discurso “científico” dos autores que publicaram no periódico Boletim de Eugenia que circulou mensalmente de 1929 a 1933. Leva em conta a repercussão do movimento eugênico no país e suas relações com as transformações sociais que estavam ocorrendo naquele momento. Esta tese está dividida em uma introdução e mais cinco capítulos. O Capítulo 1 trata da origem do termo eugenia e de seus desdobramentos. O Capítulo 2 discute as questões relacionadas à eugenia no Brasil, desde sua colonização até a República. O Capítulo 3 comenta sobre as idéias eugênicas contidas no Boletim. O Capítulo 4 analisa o discurso relacionado à eugenia. O Capítulo 5 apresenta algumas considerações finais sobre o assunto. Este estudo levou à conclusão de que a defesa da eugenia como ciência esteve presente no discurso da maioria dos autores que publicaram no Boletim e estava relacionada intimamente à formação do povo brasileiro. Entretanto, existiam diversas possibilidades quanto à justificativa deste posicionamento. Em alguns casos, como no de Octavio Domingues e Roquette Pinto, por exemplo, os argumentos se basearam em evidências científicas que estavam disponíveis na época. Entretanto, na maior parte dos casos refletia a visão da elite da época que almejava o branqueamento da raça, sem fundamentação científica, movida principalmente pelo preconceito.

 

 

5. Traduções de textos primários de história da Biologia: “lazzaro spallanzani e os fósseis da ilha grega de cItera”

 

Maria Elice Brzezinski Prestes

Universidade de São Paulo (USP)

eprestes@ib.usp.br

O naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) é mais conhecido por seus estudos experimentais sobre as funções dos seres vivos, como reprodução, digestão, circulação, respiração. Pouco se conhece, no entanto, de outra vertente de seus interesses científicos, a que diz respeito a suas atividades no campo da História Natural. Para esse fim, Spallanzani realizou diversas viagens e excursões naturalísticas, sendo que 11 delas ocorreram entre os anos de 1779 e 1792, sendo, portanto, praticamente anuais. Foram muitos os temas de estudo motivados por essas viagens. Ele estudou fenômenos vulcânicos, fez observações físicas e geológicas (como, por exemplo, sobre a origem das fontes de água doce), estudou a formação de corais, investigou a eletricidade da enguia. Além disso, como muitos naturalistas de todo o século XVIII, Spallanzani também inventariou e coletou minerais, fósseis, vegetais e animais (mamíferos, aves, anfíbios, peixes, insetos e vermes). Dessa forma ele enriqueceu o acervo do Museu de História Natural da Universidade de Pavia, onde lecionava, além de um museu próprio mantido em sua casa em Scandiano, cuja coleção foi mais tarde transferida para o Museu Cívico de Reggio Emilia, onde até hoje se encontra.

Com destino a Constantinopla, em uma de suas viagens mais longas (de 22 de agosto de 1785 a 26 de dezembro de 1786), Spallanzani aportou, em 30 de setembro de 1785, na ilha grega de Cérigo, antiga Citera, localizada entre o Peloponeso e Creta. Apesar de não possuir um grande porto, a ilha servia, desde a Antiguidade, ao abrigo de navios tomados por tempestades em seu trajeto entre o Mar Jônico e o Mar Egeu (Figura 1). Foi precisamente uma tempestade que manteve o navio em que Spallanzani viajava preso no arquipélago por oito dias até que os ventos amainassem para seguir viagem, o que possibilitou ao naturalista observar a ilha “repetidamente e em muitos lugares”1. Essas observações foram reunidas em uma carta endereçada ao amigo editor Antonio Maria Lorgna, para quem prometera enviar “algum escrito físico” para ser publicado no volume terceiro da Memória de Matemática e Física da Sociedade Italiana, de 17862. Nesse mesmo ano, a carta foi reimpressa em periódico milanês dedicado às Ciências e as Artes, além de ter sido publicada em 1789 em alemão e em 1798 em francês, denotando a importância que os contemporâneos atribuíram às descobertas ali relatadas por Spallanzani.

A tradução francesa constitui-se em excerto do original, contendo apenas os trechos mais importantes3. A tradução para o português que aqui se segue foi feita a partir dessa publicação francesa, confrontada com o original italiano, selecionando também apenas os parágrafos que se referem aos fósseis. Antecedendo o trecho traduzido a seguir, Spallanzani fornece uma breve descrição da ilha. Salienta que três quartos de sua superfície são bastante estéreis, correspondendo à rocha nua, o que lhe rendia o apelido de “Sibéria dos venezianos”. O terço cultivado pelos colonos produzia alguns grãos e uvas, consideradas por Spallanzani como de excelente qualidade.

Spallanzani anuncia que a carta contém o relato de algumas observações que considera “novas e não de tudo desprezíveis”: a descoberta de conchas fossilizadas intactas no interior de rochas vulcânicas4 (Figura 2). Como outros naturalistas contemporâneos, Spallanzani acredita que os fósseis de Citera correspondem a “raças” de conchas já extintas. Além disso, também encontra o que considerou serem ossos humanos fossilizados – o que será negado, em 1812, pelo paleontólogo francês Georges Cuvier (1769-1832), ao examinar os espécimes recolhidos por Spallanzani ao Museu de História Natural da Universidade de Pavia.

 

OBSERVAÇÕES FEITAS NA ILHA DE CITERA EM 1785

pOR sPALLANZANI

EXTRAÍDO DAS MEMÓRIAS DA SOCIEDADE ITALIANA

Nós consideraremos esta ilha célebre, chamada hoje Cérigo, pelo tema da mineralogia.

    1º. A ilha é vulcânica; 2º. Uma parte das matérias que a compõem, encerram um grande número de testáceos petrificados, que não passaram por qualquer alteração pelo fogo; 3º. Uma de suas montanhas é totalmente preenchida de ossadas de homens e de animais petrificados; 4º. Há na ilha uma grota subterrânea com numerosos estalactites calcários.

    1º. A maior parte da ilha é coberta, como já mencionamos, de rochas estéreis. Essas rochas, do lado do mar, parecem muros perpendiculares de uma altura considerável e não possuem em suas seções aquela ordem de estrutura por estratos, de largura e matérias diferentes, que se observa comumente nas montanhas que se avizinham do mar, e notadamente naquelas que circundam as ilhas de Zante e de Corfu. Nas montanhas de Citera, é difícil encontrar o mais leve traço desses estratos. Elas parecem todas formadas de uma só vez, e de uma matéria uniforme.

    [...]

 Figura 1. Mapa do porto de Citera em livro de 1692.

    2º. O segundo fenômeno é o dos testáceos reunidos a matérias vulcânicas. As conchas são de duas espécies, a saber: de ostras e pectens; as primeiras são encontradas em muito grande quantidade e são de um tamanho considerável. Muitas entre elas possuem mais de 9 polegadas de comprimento e 6 polegadas de largura. Todos esses testáceos estão perfeitamente petrificados, sem que apareça em sua superfície o mais leve indício de alteração causada pelo fogo. Esses dois gêneros de conchas estão diversamente distribuídos nas montanhas. Há muitos na superfície, sendo facilmente visíveis; outros, em número ainda maior, estão encerrados no interior e só podem ser extraídos partindo a pedra. Eles estão, na maioria, inteiros e perfeitamente conservados. Em muitos lugares encontram-se, contudo, grandes massas de pedra que são compostas apenas de seus detritos.

    O fenômeno dos testáceos petrificados, encontrados na superfície ou no interior das montanhas, não tem nada de novo nem de extraordinário na natureza. Mas pode ser um fato novo, que merece uma maior atenção, a descoberta de testáceos intactos dentro de pedras que possuem características vulcânicas. Parece de fato inconcebível, que a ação do fogo que altera mais ou menos todas as pedras, até produzir uma verdadeira vitrificação, não tenha calcinado, nem reduzido a pó esses testáceos, como teria ocorrido pelo fogo ordinário. Diante da curiosidade em procurar a causa desse fenômeno singular, eu creio que se poderiam estabelecer duas hipóteses sobre os vulcões de Citera. Ou esses vulcões exerceram sua ação sobre a ilha já existente, ou foram eles que a produziram. Na primeira suposição, seria necessário admitir que os testáceos se encontravam na ilha antes que o fogo tenha agido sobre ela, embora seja difícil conceber como eles não foram destruídos nem alterados por sua ação. Também é importante salientar aqui que as conchas jamais se encontram envolvidas, nem em pedra pome, nem em lava, que passaram por uma verdadeira fusão, mas somente dentro das pedras que não sofreram senão uma ligeira ação do fogo.

    Na segunda hipótese a explicação desse fenômeno parece mais fácil. Suponha-se que a ilha de Citera surgiu do seio do mar pelo efeito de um vulcão. Os fogos subterrâneos agindo sob a terra com uma grande força, teriam, pouco a pouco, elevado o fundo do mar, sobre o qual deviam encontrar-se esses dois gêneros de testáceos, que teriam saído do mar ao mesmo tempo que a ilha. A força do fogo temperado pela água, não teria podido produzir sobre eles um grande efeito, ainda que tenha continuado a agir no interior dessas grandes massas de terra que serviram à formação da ilha, e a empurrá-las para fora do mar até uma altura determinada.

    Há um exemplo marcante de testáceos que não foram danificados pelo fogo, nas ostras encontradas na Isola-Nuova, que a ação de um vulcão fez sair do seio do Arquipélago em 1707. Também é verdade que os vestígios de vulcões extintos que estão em Citera, não permitem duvidar que a ação do fogo se fez exercer durante algum tempo sobre a superfície da ilha após sua formação; mas é essencial salientar que perto das crateras dos vulcões, não se vê jamais os testáceos, e que, ao contrário, eles são sempre encontrados nos lugares onde a ação do fogo foi menos sensível.

    Uma última observação apóia essas conjecturas sobre a origem de Citera. Costeando a ilha, vê-se que os montes que se prolongam para dentro do mar continuam a ser da mesma natureza dentro d’água, e que eles formam uma massa sólida com as partes exteriores. Isso prova também que o fogo fez essa ilha sair do seio do mar. Diversas ilhas do Arquipélago foram formadas de uma maneira semelhante por vulcões. Estrabão5 (livro 1) nos assegura que em sua época os fogos subterrâneos fizeram surgir uma nova ilha entre as ilhas de Terasia e de Tera, e que os rodianos, que foram os primeiros a ali desembarcarem, ergueram um templo dedicado à Netuno. A Isola-Nuova, de que acabo de falar, teve a mesma origem, e é mais que provável que a mesma causa produziu as duas ilhas que lhe avizinham, a saber, a grande e a pequena Cammeni, palavra grega que, apesar de sua corrupção, denota ainda queimada.

    Uma outra coisa digna de nota, é que no mar que circunda Citera não se encontram ostras nem pectens semelhantes às que estão na ilha. Pode-se supor que os despojos desses animais pertencem a regiões estrangeiras, e que o mar os trouxe a Citera. Mas é mais natural acreditar que essas espécies foram, no passado, abundantes no fundo deste mar e que a raça foi perdida – fenômeno para o qual não faltam exemplos em diversos outros lugares, tanto para os animais aquáticos quanto terrestres, segundo o testemunho de naturalistas os mais esclarecidos.

    3º. Os ossos fósseis que são encontrados em Citera são objeto de um fenômeno não menos singular. Esses ossos se encontram em uma montanha escarpada, em forma de cone cuja ponta é cortada. Ela está situada no meio da ilha, a pouca distância do mar. No raio de uma milha à sua volta, começam a ser encontrados os ossos, e desse ponto até o cume, não há nenhuma parte exterior nem interior que não seja cheia desses despojos de animais. Os habitantes chamam esse lugar a montagna della ossa (montanha da ossada). A maior parte é de ossos humanos, embora também haja alguns que parecem pertencer a quadrúpedes. Sua cor, tanto no interior quanto no exterior, é de uma grande brancura; eles estão bem petrificados, ou seja, possuem o peso e a dureza das pedras.

    Todos esses ossos que são encontrados inteiros ou partidos em pedaços estão envolvidos em uma matriz de pedra calcária que forma com eles um só é mesmo corpo. É claro, portanto, que esses ossos foram enterrados em uma terra mole, com a qual petrificaram simultaneamente. Nas partes escavadas desses ossos, encontram-se pequenos cristais espatosos que conferem grande beleza a essas petrificações.

     Há, contudo, uma diferença considerável entre a substância pedregosa que envolve os testáceos e a que encerra os ossos; pois estes últimos não possuem nenhum sinal vulcânico. É um composto duro, amarelo-avermelhado, sem o mais leve sinal de fusão. Mas qual agente físico poderia ter trazido para esta montanha uma tão grande quantidade de ossadas? E como e de onde eles puderam ser reunidos nesse lugar tantos indivíduos de nossa espécie? Na versão dos insulares, esse lugar foi um dia o cemitério do país; essa é pelo menos a opinião mais comum. Mas é difícil aceitá-la, uma vez que se considere que os cemitérios, por mais antigos que sejam, não são próprios à petrificação de ossos. Além disso, qual seria a cidade tão povoada desse jeito para poder fornecer quantidade tão prodigiosa de ossadas que levou a formar essa enorme montanha? Enfim, se durante uma série grande de anos foram enterrados os mortos nesse lugar, o grau de petrificação não seria o mesmo em todos esses ossos, mas os primeiros seriam melhor petrificados que os últimos. Ora, não há aqui a menor dessemelhança, todos os ossos estão igualmente e perfeitamente petrificados. Não é permitido portanto duvidar de que esses ossos tenham sido trazidos de uma só vez para este lugar, e que a causa não tenha sido violenta e extraordinária. Mas em que época e como isso aconteceu? É um desses fatos da natureza que não se pode explicar.

     4º. O quarto e último objeto que deve interessar aos naturalistas em Citera é uma gruta subterrânea situada no Oeste da ilha, perto do mar. Sua entrada, que é irregular, conduz a uma peça de mais ou menos 72 pés de largura por 9 pés de comprimento, em cujas paredes e forro são de pedra calcária, jamais tocados pela mão do homem. Há estalactites por todos os lados [...].

Figura 2. Ostra petrificada (figura 1) e ossos de frente e de lado (figuras 2 e 3, respectivamente) em prancha da carta publicada na Mem. della Società Italiana, tom. III., 1786. 

     Esta ilha que se vê hoje praticamente deserta, já era assim desde a sua origem, ou ela degenerou gradativamente até seu estado atual de esterilidade? Uma degeneração desse tipo poderia ter ocorrido, na verdade, produzida por uma dessas enormes vicissitudes às quais são sujeitas as regiões de nosso globo. Mas Citera tendo sido formada, originalmente por vulcões, deve ter sido no passado tão deserta quanto é atualmente; é mesmo permitido supor que ela era ainda mais estéril, se considerar-se que as lavas e outras produções vulcânicas se decompõem em terra, após certo espaço de tempo.

     É, pois, mais provável que Citera, durante os bons tempos da Grécia, estivesse no mesmo estado que é vista hoje em dia. As idéias mitológicas, o tempo consagrado a Venus, os sacrifícios que eram feitos, a multidão de estrangeiros que aportaram, são sem dúvida o que conferiu à ilha uma tão grande celebridade entre os gregos.

NOTAS DE RODAPÉ:

1 Spallanzani estima o tamanho da ilha em 60 milhas; segundo registro atual, ela contém uma área de 284 km2.

2 SPALLANZANI, Lazzaro. Osservazioni fisiche istituite nell’isola di Citera oggidì detta Cerigo. Memorie di Matematica e Fisica della Società Italiana, Tomo III, p. 439-464, 1786.

3 SPALLANZANI, Lazzaro. Observations faites dans l’ile de Cythère en 1786. Osservations sur la Physique, etc. (J. de Physique), tome XLVII, p. 278-283, Paris, 1798.

4 O tema dos fósseis foi tratado por Spallanzani em 1758 em uma comunicação intitulada “Dissertação sobre os corpos marino-montanos”, cuja tradução foi publicada em duas partes neste Boletim de Filosofia e História da Biologia (v. 3, n. 4 e v. 4, n. 1).

5 Sábio grego que viveu entre 63/64 a.C. e cerca de 24 d.C. e escreveu Geographica, obra em 17 volumes sobre os povos e lugares das diferentes regiões do mundo conhecido em sua época.

 

 

Citação bibliográfica deste artigo:

PRESTES, Maria Elice Brzezinski. Lazzaro Spallanzani e os fósseis da Ilha grega de Cítera. Boletim de História e Filosofia da Biologia 5 (1): 9-13, mar. 2011. Versão online disponível em: <http://www.abfhib.org/Boletim/Boletim-HFB-05-n1-Mar-201.pdf >. Acesso em dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]

 

 


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