ISSN 1982-1026
Boletim de História e Filosofia da Biologia
Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)
Gildo Magalhães
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História
Universidade de São Paulo
Num sentido amplo, a História das Ciências trata do desenvolvimento no tempo do conhecimento humano. Num entendimento mais restrito, é a história do homem e de suas instituições no esforço de compreender e usar a natureza. Longe de um espírito positivista, não se trata de encarar o passado das ciências como um repositório de teorias rejeitadas, autores esquecidos e experiências ultrapassadas, ou um desfilar de nomes e datas de escasso interesse. O estudo desse passado está em aberto, e um dos argumentos para se estudar a História das Ciências é compreender melhor como funcionaram e seguem funcionando os diversos caminhos do conhecimento científico, suas controvérsias e resultados, mesmo quando considerados errados. A História das Ciências tem por objeto o conhecimento científico como fenômeno social, econômico e cultural.
Naturalmente este é um empreendimento temerário e de dimensões gigantescas, quando se considera o conjunto de todas as ciências naturais, a medicina, as técnicas, as matemáticas, as ciências humanas e sociais. Histórias de ciências particulares começaram a ser particularmente desenvolvidas a partir do século XVIII, crescendo exponencialmente, e nos últimos cem anos foram acrescidos os recursos de diversos outros campos, como a filosofia, a sociologia, a arte. Para se ter uma ideia, a Sociedade Americana de História da Ciência edita anualmente um índice de obras consideradas “atuais”, com cerca de 10.000 indicações bibliográficas.
Com essas palavras cautelares, a indicação aqui de uns poucos livros pretende ser apenas um pequeno passo introdutório, apresentando algumas sugestões que possam, de forma cativante, introduzir o leitor nesse mundo vasto e estimulá-lo para prosseguir descobrindo o prazer de conhecer mais sobre o processo do conhecimento. Foram escolhidas propositalmente obras em português, porque desde a implantação dos estudos de História das Ciências na USP na década de 1970, de forma pioneira no Brasil, já há entre nós um bom número de obras sérias sobre o assunto, mesmo que em geral sejam traduções.
Um bom começo será De Arquimedes a Einstein – A face oculta da invenção científica (1994) de Pierre Thuillier, que através de oito estudos de caso, indo desde a Antiguidade (o enigma dos espelhos ardentes de Arquimedes) até a contemporaneidade (subjetividade e religião na obra de Einstein), apresenta como trabalham os historiadores da ciência. Foi desejo bem-sucedido do autor a sua intenção de “complicar” a imagem simplista que se tem da ciência e discutir o que são “fatos”, palavra nada precisa porque sujeita a interpretações dos cientistas (e dos historiadores).
Colocando em questão as noções de “objetividades” e “normalidade”, Thuillier leva o leitor ao encontro de cientistas, apresentados como homens que inventam e constroem certas formas de racionalidade e não um único “método”, verdadeiro e infalível.
Em Dez grandes debates da ciência (1999), Hal Hellman apresenta em linguagem facilitada dez contendas famosas, envolvendo nomes conhecidos de duplas em combate, de Urbano VII contra Galileu a Derek Freeman contra Margaret Mead. Cada um dos debates é examinado buscando uma certa isenção, apresentando os argumentos de cada lado, tais como foram esgrimidos na época. Trata-se de obra interessante porque, se algumas dessas controvérsias foram decididas a favor de um dos contendores, isto não impede que mesmo numa leitura possivelmente até anacrônica, haja elementos ponderáveis em ambas as partes, que eventualmente ainda interessam para a pesquisa científica e, naturalmente, para o historiador.
Elementos para uma história das ciências (1996) é obra coletiva dirigida por Michel Serres, contando com mais de duas dezenas de diversos nomes bem conhecidos da comunidade de historiadores da ciência. Dividida em três volumes (“Da Babilônia à Idade Média”, ‘Do fim da Idade Média a Lavoisier” e “De Pasteur ao computador”), amplia-se o modelo dos dois livros anteriores, com ensaios mais densos de estudos de casos. Esquemas e quadros explicativos sobre detalhes mais técnicos permitem mesmo a pessoas relativamente leigas nas ciências acompanharem as discussões e as ricas conclusões, que instigam novas leituras.
Um autor brasileiro de interesse é Hilton Japiassu, com As paixões da ciência – Estudos de História das Ciências (1991), inspirado no tratamento histórico empregado por Pierre Thuillier. Dez temas estão presentes, não faltando o infalível caso Galileu, que mesmo tendo sido tão estudado e interpretado, sempre apresenta facetas pouco exploradas, despertando muitas controvérsias. Também comparecem assuntos menos explorados, como a bruxaria nos tempos modernos e a origem pseudo-científica do racismo. O autor aproveita para discutir as linhas pretensamente opostas do externalismo e internalismo na História das Ciências.
Ruy Gama, antigo professor da FAU/USP, organizou uma antologia, História da Técnica e da Tecnologia (1985), bastante valiosa. São textos básicos, incluindo autores antigos de História das Ciências, como Johann Beckmann (século XVIII), com seu estudo sobre a contabilidade italiana. Da primeira metade do século XX os destaques são os ensaios já clássicos sobre os moinhos d’água, de autoria de Marc Bloch e Bertrand Gille, além do importante e polêmico texto de Lynn White Jr a respeito de tecnologia e invenção na Idade Média. Neste há uma controvérsia sobre a originalidade de uma série de invenções atribuídas pelo sinólogo Joseph Needham aos chineses, e disputadas por White como sendo europeias – de qualquer modo este autor inovou ao mostrar a riqueza de uma época que, longe de ser de trevas, foi uma etapa imprescindível para o avanço das técnicas. Outros textos são também úteis e acessíveis, inclusive com a novidade de entre os treze escolhidos, haver dois que são de autores brasileiros.
Os filósofos e as máquinas (1989) é uma contribuição com grande erudição de Paolo Rossi, onde se nota a profunda influência de Alexandre Koyré e Edgar Zilsel. Os textos, de tamanho modesto e agrupados em torno de três temas (“Artes mecânicas e filosofia no século XVI”, “A ideia de progresso científico” e “Filosofia, técnica e história das artes no século XVII”) descortinam novas perspectivas entre a ideologia dos técnicos e o nascimento da noção moderna de progresso. Rossi defende que o método experimental da ciência moderna é o resultado de uma confluência dos artesões e praticantes das “artes mecânicas” renascentistas, dos navegadores que descobriram novas terras e dos engenheiros e militares que escreveram tratados técnicos.
O inesperado sucesso comercial de A estrutura das revoluções científicas (1962, 1ª edição) tornou muito conhecidos o nome e a teoria de Thomas Kuhn. Tanto na área de ciências exatas e naturais, quanto na de ciências humanas, o modelo proposto para o funcionamento da ciência foi bastante aceito como espelhando a prática institucional. Em seu cerne, a explicação de Kuhn é que a ciência se desenvolve em duas fases principais: a normal, em que se estabelecem os paradigmas pactuados pela comunidade científica, identificados pelos livros-textos, pela linguagem, pela maneira de fazer experiências, pelas respostas esperadas a problemas nas provas escolares, pelo conteúdo e aceitação de trabalhos em congressos, etc. Quando surgem anomalias, a ciência normal tenta resolvê-las por vezes fazendo acréscimos e alguma modificação nas teorias, de forma a incorporarem o que for uma disparidade. No entanto, se persistem e se agravam as anomalias, a tradição começa a se desintegrar e são radicalmente reformuladas as teorias e práticas – são as revoluções científicas. Usando exemplos convincentes extraídos principalmente da física e química, o livro não apresenta dificuldade de entendimento, graças à didática da exposição.
Já em Contra o método (1974), Paul Feyerabend subverte totalmente a metodologia de Kuhn, com resultados surpreendentes. Usando como estudo de caso o célebre julgamento de Galileu, exposto em detalhes, o autor argumenta que o famoso físico italiano não tinha argumentos suficientes, do ponto de vista científico, contra o tribunal que o examinou, composto também por alguns cientistas respeitáveis, que o colocaram em situação difícil com suas perguntas metodológicas. O que Galileu fez, convicto como estava de seus pontos de vista, foi apelar para argumentos de retórica, mesmo sem base científica. Feyerabend conclui que, longe de haver um método de consenso científico, os cientistas em geral, e não só Galileu, se valem de tudo que estiver ao seu alcance para convencerem outras pessoas. Há certamente exageros nesse quadro, mas a exposição brilhante e o estilo do autor merecem ser apreciados e entendidos.
Num livro apaixonante, O homem e o universo – Como a concepção do universo se modificou através dos tempos (1939), Arthur Koestler apresenta uma história não canônica da astronomia (no original o livro se chama Os sonâmbulos). Inicialmente, demonstra-se que o sistema heliocêntrico desenvolvido pelos gregos antigos, em sua versão mais avançada, resolvia bem uma série de anomalias verificadas na observação dos planetas solares conhecidos. O modelo foi submerso durante séculos, trocado por um engenhoso sistema geocêntrico de epiciclos, cientificamente bastante sofisticado. O que Koestler faz em seguida é a crítica da história da ciência baseada em heróis, datas e nomes. Sua exposição e contextualização das obras de Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e Galileu permanece como exemplo de pesquisa rigorosa, naturalmente acrescida de julgamentos de valor do autor. A compreensão de Koestler sobre a relação entre o conhecimento científico e a “verdade”, perante a qual os homens se movem como sonâmbulos, é de interesse também para a ciência atual.
Munidos de uma bagagem como a dos livros anteriores, os leitores aproveitarão bem O passado das ciências como história (2007), em que Kostas Gavroglu explora alguns dos problemas teóricos e práticos que ocorrem na História das Ciências, como o tipo de perguntas que são colocadas, as fontes utilizadas, as controvérsias entre as soluções imaginadas, as tendências historiográficas. Usando exemplos históricos da astronomia (e novamente o caso de Galileu é rico por apresentar novas e inquietantes conclusões), da química e da mecânica quântica, devidamente expostos de forma simplificada para um público leigo, Gavroglu se preocupa em falar dos historiadores da ciência, como usam seus documentos e como o passado é por eles construído, tratando em paralelo de como é formado o discurso científico e qual a função social da ciência.
De caráter um pouco mais técnico do que o anterior, Helge Kragh em Introdução à historiografia da ciência (2001) analisa a escrita da História das Ciências, a partir dos seus objetivos e justificativas, discutindo os problemas da objetividade, das hipóteses e explicações dos historiadores. O leitor é levado a apreciar questões de teoria, como o anacronismo, as ideologias e mitos na História das Ciências. Particularmente esclarecedores são os capítulos dedicados às muitas fontes primárias e secundárias possíveis, à história escrita não por historiadores mas por cientistas, à história experimental, à abordagem biográfica e à cientométrica (quantitativa). Para que esse trabalho não ficasse aridamente teórico, o autor se serve de uma grande quantidade de exemplos tirados da história e da historiografia.
Finalmente, A evolução da tecnologia (2001), de George Basalla, é uma inovadora história, em que o autor usa e ao mesmo tempo critica análises marxistas da tecnologia. Seu ponto de partida é o confronto entre necessidade e diversidade de soluções técnicas para problemas sociais. Como todo historiador da ciência, se defronta com o problema da invenção ser uma longa cadeia contínua de inovações, ou uma ruptura radical com a tradição. Para isto, conceitua os fatores psicológicos, intelectuais, socioeconômicos e militares das inovações e da seleção que sofrem em seu processo histórico, resultando o que se chama de evolução e progresso, não no sentido tradicional, que o autor nega em favor de uma visão darwinista da tecnologia, que faz analogia com a evolução da vida. Mesmo discordando-se desta abordagem, o texto é repleto de colocações provocadoras e iluminadoras.
Acabamos assim a indicação sumária de livros, em que foram fatalmente deixadas de lado muitas obras importantes, como as de Alexandre Koyré, Alan Chalmers, Milton Chalmers, Robert Merton e tantos outros, cuja leitura traria ainda maior compreensão pela importância da História da Ciência, mas que o leitor que chegou a este ponto poderá descortinar em seguida.
Gildo Magalhães dos Santos Filho, professor titular de História da Ciência na FFLCH. Foi bolsista da Fundação Krupp/Alexander von Humboldt na Alemanha (1983-84), Scholar no Instituto Smithsonian (Washington, 2003) e pesquisador do Science History Institute (Filadélfia, 2013). É diretor do Centro de História da Ciência, coordenador do Grupo de Pesquisa Khronos, no Instituto de Estudos Avançados, da USP, e membro do Centro de Filosofia da Ciência na Universidade de Lisboa. Publicou os livros: “Força e Luz: eletricidade e modernização no Brasil”; “Introdução à metodologia da pesquisa”; “História e Energia: memória, informação e sociedade”; “Ciência e Conflito. Ensaios de História e Epistemologia das Ciências”; “Um bit auriverde”; “Ciência e Ideologia”; O Progresso e seus Desafios: Uma perspectiva histórica de ciências e técnicas no Brasil”; “A trama do universo. Evolução e euritmia”.
Citação bibliográfica deste artigo:
GUIMARÃES, Gildo. Doze livros para entender a História das Ciências. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 15 (2), jun. 2021. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]