ISSN 1982-1026

Boletim de História e Filosofia da Biologia

Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)

 Tradução de artigo publicado da área

“A contínua importância da obra de Giuseppe Raddi”

Susanne S. Renner

Department of Biology, Washington University, Saint Louis, MO, USA (current address) and Ludwig-Maximilians University, Munich, Germany

E-mail: srenner@wustl.edu

Tradução de Marilene Kall Alves

Doutoranda em Letras na UFRGS. Tradutora e intérprete das Línguas italiana e português.

E-mail: marileneprofe@hotmail.com

Revisão técnica da tradução, de biologia e história da ciência, de Maria Elice de Brzezinski Prestes
Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo

E-mail: eprestes@ib.usp.br

Referência do artigo original:

RENNER, Susanne S. La contínua importanza dell’Opera di Giuseppe Raddi. Enciclopedia Italiana, 7: 94-103, 2021. 

Em meados do século XVIII, naturalistas tinham como meta descobrir

e documentar a flora e a fauna do mundo, que conservavam sob a forma de

exemplares exsicados, prensados, empalhados, presos com alfinetes ou em

álcool, a fim de compor coleções que pudessem ser examinadas por gerações

futuras de estudiosos com novos métodos.

Os picos de Santo Antônio, Dedo de Deus e Escalavrado, explorados por Raddi na sua viagem pelo Brasil e agora parte do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, no Estado do Rio de Janeiro (© Denise Pinheiro da Costa/Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro).

Quando a biologia se afirmou como disciplina, em meados do século XVIII (1) , a história natural esteve entre os seus principais fundamentos. Os naturalistas (2) tinham como meta descobrir e documentar a flora e a fauna do mundo, cujos exemplares eram conservados exsicados, prensados, empalhados, presos com alfinetes ou em álcool, a fim de compor coleções que pudessem ser examinadas por gerações futuras de estudiosos com novos métodos.

Essas coleções estiveram na origem (3) da principal teoria de organização da evolução formulada por Charles Darwin em On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life (John Murray, Londres, 1859) e continuam sendo, até os dias atuais, um segmento vital da ciência. As coleções de história natural, fundamentais para disciplinas como a ecologia, a agricultura e a medicina, atraíram também forte interesse popular, como afirma Paul L. Farber in Finding Order in Nature:  The Naturalist Tradition from Linnaeus to E. O. Wilson (Johns Hopkins University Press, 2000).

Busto de Giuseppe Raddi, século XIX, Florença, da Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural – Botânica, Universidade de Florença, inv. n. 187 (por gentil concessão da Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural, Universidade de Florença).

Um pioneiro da história natural que teve um pé no século XVIII e outro no século XIX foi Giuseppe Raddi (1770-1829), que contribuiu em uma frente dupla: foi um dos pais (4) do estudo das hepáticas na Europa e estabeleceu importantes coleções de plantas e insetos da costa do Brasil.  O seu material e os seus conhecimentos conservam até hoje a sua importância, confirmada pelos estudos publicados por ocasião do bicentenário de seu retorno do Brasil em 2017 e pelas pesquisas escritas sobre as Melastomatáceas e hepáticas, incluindo Frullania raddi e Pellia raddi.

Exemplares de Bryopteris filicina (Sw.) Nees, coletas de Raddi no Brasil; à esquerda, a descrição, escrita à mão, da espécie também presente na Crittogame brasiliane, Pisa, Museu Botânico, Herbário (© Universidade de Pisa, da Rede de Museus Universitários, Museu Botânico, Herbário, Pisa)
Exemplares de Pyrrhobryum spiniforme (Hedw.) Mitt. Coletas de Raddi no Brasil. Florença, Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural – Botânica, Universidade de Florença (por gentil concessão da Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural, Universidade de Florença)
Raddi nasceu em Florença e é provável que o interesse pela botânica surgiu por conta de seu primeiro trabalho em uma botica, onde aprendeu a conhecer as plantas medicinais. De 1785 a 1805 ele trabalhou no Horto Botânico de Florença, anexo ao Museu de Física e História Natural e iniciou a publicação de seus trabalhos sobre criptógamas e fungos.  À época napoleônica ficou por um breve período sem trabalho, mas, com o retorno do grão-duque da Toscana Ferdinando III, em 1814, Raddi foi nomeado curador das coleções científicas do Museu e intensificou as pesquisas sobre criptógamas (1818), publicando importantes artigos sobre hepáticas.

Exemplares de Octoblepharum albidum Hedw. Coletas de Raddi no Brasil, Florença, da Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural – Botânica, Universidade de Florença (por gentil concessão da Rede de Museus Universitários, Museu de História Natural, Universidade de Florença).

O talento do jovem Raddi levou Ferdinando III a escolhê-lo como membro italiano de um grupo internacional de estudiosos que deveria acompanhar em 1817 a arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria ao Brasil, onde iria se casar com o príncipe português Pedro de Alcântara de Orléans e Bragança. Faziam parte desse grupo o zoólogo alemão Johann Baptist Ritter von Spix (1781-1826), o botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), o botânico austríaco-tcheco Johann Christian Mikan (1769-1844), o botânico austríaco Johann Baptist Emanuel Pohl (1782-1834), o zoólogo austríaco Johann Natterer (1787-1843), o botânico austríaco Heinrich Wilhelm Schott (1794-1865), um taxidermista e dois pintores. Por falta de fundos, Raddi permaneceu no Brasil por um período relativamente breve, de 5 de novembro de 1817 a 1° junho de 1818, mas, sendo extremamente dedicado em suas pesquisas, conseguiu coletar de 3.000 a 4.000 plantas (com 2-3 exemplares idênticos por coleção), 2.230 insetos, 49 répteis, 65 minerais e 340 sementes. Somando estes números às coleções anteriores e posteriores coletadas na Itália e no Egito, estima-se que ele coletou cerca de 6.800 entre plantas e fungos.

A floresta pluvial Atlântica visitada por Raddi, hoje parte do Parque Nacional do Itatiaia, no Estado do Rio de Janeiro        (© Denise Pinheiro da Costa/Instituto de Pesquisas, Jardim Botânico do Rio de Janeiro).

No Índice Internacional de Nomes de Plantas (https://www.ipni.org/a/8078-1; último acesso em 15 de fevereiro de 2021) constata-se que Raddi nomeou 303 novas espécies de plantas vasculares, o que atesta a importância das suas contribuições para o conhecimento da biodiversidade da flora mundial. Além disso, também descreveu novas espécies de fungos, hepáticas e alguns animais.
Chegou em Genova em 19 de agosto de 1818, após quase doze meses de viagem, e logo iniciou os trabalhos para publicar as suas descobertas sobre a flora brasileira: um ensaio sobre samambaias (1819), seguido de contribuições sobre plantas com flor e sobre aquelas que são herbáceas (1823, 1825). O estudioso também deu sequência às suas publicações sobre as criptógamas italianas e, quando compartilhou duplicatas de seu material, trocou correspondência com os mais ilustres botânicos de seu tempo, entre os quais William Jackson Hooker (1785-1865) dos Kew Gardens, Christian Hendrik Persoon (1761-1836) da África do Sul e Alphonse de Candolle (1806-1893) de Genebra.

Quando Ferdinando III morreu em 1824, seu filho Leopoldo II continuou a sustentar a pesquisa científica, como era tradição de sua família, e encarregou Raddi para que se unisse a dois egiptólogos, o francês Jean-François Champollion (1790-1832) e o italiano Ippolito Rosellini (1800-1843), em uma expedição franco-toscana no Egito (de julho de 1828 a setembro de 1829).   O grupo zarpou em Toulon rumo a Alexandria em 31 de agosto de 1828, prosseguindo para o sul ao longo do Nilo até a segunda cascata, onde atualmente é a fronteira entre o Egito e o Sudão. Em abril de 1829 Raddi retornou para o Cairo e de lá conduziu diversas explorações no Baixo Egito, onde contraiu uma infecção intestinal que o obrigou a embarcar para a Itália em 23 de agosto sem conseguir alcançar a pátria, pois morreu na ilha de Rodes no início de setembro de 1829. As plantas coletadas por Raddi no Egito chegaram ao porto de Livorno em 2 de janeiro de 1830 e estão mantidas no Museu Botânico de Pisa, porém, a maior parte das outras coleções de Raddi está conservada no Museu de História Natural do departamento de Botânica da Universidade de Florença.

Giuseppe Angelelli, A expedição franco-toscana ao Egito, comandada por Jean-François Champollion e Ippolito Rossellini, 1830-1836 perto de Florença, Museu Arqueológico (© 2021. A. Dagli Orti/Scala, Florença).

Em 1830 os amigos e colegas florentinos dedicaram a Raddi um monumento comemorativo que atualmente se encontra na Capela Castellani da basílica de Santa Croce, enquanto uma cópia do busto se encontra no Museu de História Natural do departamento de Botânica da Universidade.

A contínua importância das coleções de Raddi reside no fato de que elas documentam a presença de determinadas espécies em um local e momento específico. Tal documentação é o único instrumento que temos para reconstruir as comunidades vegetais (e animais) existentes antes da chegada da agricultura moderna, da indústria e das mudanças climáticas. Algumas delas também têm maior relevância porque são compostas por holótipos, ou seja, exemplares sobre os quais são baseadas as primeiras descrições de novas espécies. As coleções de Raddi foram, além do mais, objeto de recentes pesquisas, o que testemunha a relevância do material de que são constituídas para a taxonomia e para a ecologia moderna. Uma vez que grande parte do habitat em que Raddi coletou os seus exemplares na região do Rio de Janeiro e na Itália mudou drasticamente desde o início do século XIX, cada documento em nossa posse sobre condições pré-industriais destas espécies se torna a cada dia mais importante.

Notas:

1- Esta atribuição ao século XVIII diverge da posição majoritária dos historiadores da ciência sobre a época da institucionalização da disciplina de biologia, que a relacionam, entre vários outros aspectos, à especialização emergente apenas no século XIX. Ver, por exemplo, para a história da biologia em particular, Farber, 1982 (FARBER, Paul L. Discussion paper: the transformation of Natural History in the nineteenth century. Journal of the History of Biology, 15 (1): 145-152, 1982), Coleman, 1984 (COLEMAN, William. Biology in the nineteenth century: Problems of form, function, and transformation. Cambridge: Cambridge University Press, 1984), Kraft & Alberti, 2003 (KRAFT, Alison; ALBERTI, Samuel J. M. M. ‘Equal though different’: laboratories, museums and the institutional development of Biology in late-Victorian Northern England. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences 34: 203-236, 2003). Nota da revisora técnica.

2- A autora se refere aos naturalistas envolvidos, desde os séculos XVI e XVII, com o inventário, nomeação, classificação e coleções dos tipos naturais, minerais, plantas e animais. Essa tradição alcança o seu auge no século XVIII, com obras como a de Carl von Linné (1707-1778). Contudo, importa salientar que desde aqueles séculos das origens das ciências modernas, havia também os que se autodenominavam observadores, interessados em investigar o funcionamento dos organismos vivos, com base em estudos anatômicos e microscópicos. São representantes notórios dessa vertente, entre outros, Francesco Redi (1626-1697), Marcelo Malpighi (1628-1694), René-Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757), Abraham Trembley (1710-1784), Lazzaro Spallanzani (1729-1799). Nota da revisora técnica.

3- De acordo com a historiografia, os estudos de Darwin foram especialmente baseados na observação direta da natureza, desde a viagem a bordo do HMS Beagle, na qual também coletou espécimes para os museus de Londres, até as observações e experimentos pessoais realizados em sua casa, onde trabalhou por toda a vida. Entretanto, em suas obras encontram-se diversas referências de suas visitas a jardins botânicos e zoológicos, para observação de plantas e animais vivos, assim como a museus de história natural, para estudo de espécimes conservadas. Nota da revisora técnica.

4- As noções de “pioneiro” e de “pai” de disciplinas e ramos das ciências foram fortemente criticadas na historiografia da ciência, notadamente pelo filósofo e historiador da ciência George Canguilhem (O objeto da história das ciências, [1968] 1972). Nota da revisora técnica.

Agradecimentos

A editoria do Boletim de História e Filosofia da Biologia agradece a Rafael Raddi a proposta de publicação desta tradução ao português, tornando o texto mais acessível ao público brasileiro. Foi também devido a seus esforços que o Boletim obteve autorização da autora Susanne S. Renner e cessão  de direitos autorais do Istituto dela Enciclopedia Italiana para a publicação em português.

Citação bibliográfica deste artigo:

RENNER, Susanne S. A contínua importância da obra de Giuseppe Raddi. Trad. Marilene Kall Alves. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 15 (3), set. 2021. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]