ISSN 1982-1026

Boletim de História e Filosofia da Biologia

Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)

 Tradução de artigo publicado da área

 

“Ética evolutiva: o ressurgir da fênix”

Michael Ruse

Florida State University, EUA

E-mail: mruse@fsu.edu

Tradução de:

Matheus Adriano Ferreira Coelho. Licenciando em Ciências Biológicas (UFRJ). E-mail: coelhomaf@ufrj.br

Iago Pereira da Silva. Mestrando em Filosofia (UFRRJ). E-mail: iagopereira.silva2@gmail.com

Walter Valdevino Oliveira Silva. Departamento de Filosofia da UFRRJ. E-mail: waltervaldevino@gmail.com

Maria Irene Baggio. Ex-professora do PPG Genética e Evolução da UFRGS, do PPG Agronomia da UFRGS, do PPG Agronomia da UPF e Pesquisadora aposentada da Embrapa. E-mail: mar.irene@terra.com.br

Referência do artigo original:

RUSE, Michael. Evolutionary Ethics: A Phoenix Arisen. Zygon, 21 (1): 95-112, 1986. Michael Ruse apresentou este artigo na Thirty-first Annual Conference (“Recent Discoveries in Neurobiology: Do They Matter for Religion, the Social Sciences, and the Humanities?”) do Institute on Religion in an Age of Science, Star Island, New Hampshire, de 28 de julho a 4 de Agosto de 1984.

Resumo: A ética evolutiva tem uma (merecida) má reputação. Mas não devemos permanecer prisioneiros de nosso passado. Avanços recentes na biologia evolutiva darwinista pavimentaram o caminho para uma ligação entre ciência e moralidade, ao mesmo tempo mais modesta, mas, ainda assim, mais profunda do que empreitadas anteriores nessa direção. Não há necessidade de repudiar os insights de grandes filósofos do passado, particularmente de David Hume. Desse modo, as origens símias dos humanos realmente importam. A questão não é se, mas como, a evolução está ligada à ética.

Nós humanos somos macacos modificados, e não a criação favorita de um Deus benevolente no sexto dia. É chegada a hora, portanto, de encararmos diretamente a nossa natureza animal, particularmente na medida em que interagimos uns com os com outros. Admite-se que a assim chamada ética evolutiva tem uma má reputação. Entretanto, a questão não é se, mas como, a evolução está conectada à ética. Felizmente, graças aos desenvolvimentos recentes na ciência biológica, o caminho agora está se tornando claro.

Inicio esta discussão com uma breve introdução histórica sobre o tópico. Passo, então, para o núcleo da minha argumentação científica e filosófica. Concluo abordando algumas objeções centrais.

Darwinismo social

Em 1859, Charles Darwin publicou A origem das espécies por meio da seleção natural. Nessa obra, ele argumenta que todos os organismos (incluindo nós) se originaram através de um processo lento e natural de evolução. Além disso, Darwin sugeriu um mecanismo: mais organismos nascem do que podem sobreviver e reproduzir; isso leva à competição; os vencedores são, assim, “selecionados naturalmente”, e, por isso, a mudança acontece na direção de uma maior “adaptabilidade”. Não é verdade que Darwin, ou mesmo a ciência em geral, provocou a morte do cristianismo; mas depois de A Origem das espécies, um número cada vez maior de pessoas abandonou a Bíblia e se voltou para a evolução, de algum modo em busca de insight e orientação moral (Ruse, 1979a; Russett, 1976). O resultado disso ficou conhecido, de modo geral, como darwinismo social, a forma tradicional da ética evolutiva – embora, como muitos notaram, apesar de seu nome, ela deva sua origem mais ao homem representativo da ciência vitoriana, Herbert Spencer, do que ao próprio Darwin (Russett, 1976).

Um sistema moral completo precisa ter duas partes. Por um lado, é preciso ter um componente ético “substantivo” ou “normativo”. Aqui, oferece-se uma orientação efetiva, como em “Não matarás”. Por outro lado, é preciso ter (aquilo que é formalmente conhecido como) dimensão “metaética”. Aqui, se está oferecendo fundamentações ou justificação como em “Aquilo que deves fazer é o que for a vontade de Deus”. Sem essas duas partes, o sistema fica incompleto (Taylor, 1978).

Para os darwinistas sociais, suas fundamentações metaéticas estavam prontamente disponíveis. Elas existiriam na natureza observada dos processos evolutivos. Supostamente, ter-se-ia uma progressão do simples para o complexo, da ameba até o homem, do (como Spencer entusiasticamente apontou) selvagem até o homem inglês (Spencer, 1852; 1857). Esse progresso seria bom e teria valor imediato. Não precisaríamos de justificativa adicional para aquilo que deve ser. E, agora, de uma vez só, teríamos as diretrizes substantivas do nosso sistema. Do ponto de vista moral, deveríamos ajudar e promover – e não dificultar – o processo evolutivo. Além disso, se, como foi supostamente alegado por Darwin e certamente ecoado por Spencer, o processo evolutivo começa com uma luta sangrenta pela existência e termina com o triunfo do mais adaptado, então que assim seja. Nossa obrigação seria recompensar o forte e o bem-sucedido e deixar o mais fraco perecer (Ruse, 1985).

Certamente, como muitos alegaram – sobretudo, de modo grandioso, o notável e ardente apoiador co-evolucionista de Darwin, Thomas Henry Huxley (1901) – as coisas não funcionam assim. Metaeticamente falando, a evolução simplesmente não é progressiva (Williams, 1966). Além de tudo, ela se ramifica por todos os lados, tornando quase impossível oferecer afirmações verdadeiras sobre o que está acima e abaixo, sobre o que é mais alto e mais baixo ou melhor e pior. Entre os organismos existentes atualmente, as doenças venéreas prosperam, enquanto os grandes símios beiram a extinção. A gonorreia é realmente superior ao chimpanzé? E, seguindo as inadequações metaéticas, no nível substantivo, se tudo o mais for falso, o darwinismo social é falso. A moralidade não consiste em passar por cima do fraco e do doente, dos mais jovens e dos mais velhos. Qualquer um que diga o contrário é um cretino ético.

O darwinismo social (e, como muitos concluíram, qualquer tipo de ética evolutiva) estaria errado – não apenas errado, mas fundamentalmente equivocado. Por quê? A resposta foi apontada por filósofos tais como David Hume (no século XVIII) e G. E. Moore (no século XX). Hume (1978) observou que não se pode simplesmente ir direto do discurso sobre fatos (como a evolução) para o discurso sobre a moralidade e sobre obrigações, das afirmações sobre o que “é” para as afirmações sobre o que “deve ser”.

Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas preposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes (Hume, 1978, p. 469; 2009, 509).

Depois, em 1903, Moore endossou esse ponto em seu Principia Ethica, argumentando que todos que derivassem a moralidade do mundo físico seriam condenados por cometer a “falácia naturalista”. Explicitamente, Moore apontou que o eticista evolutivo seria um grande transgressor, na medida em que vai das afirmações sobre os fatos e processos da evolução para afirmações sobre o que se deve (ou não se deve) fazer.

Em todos os níveis, portanto, a ética evolutiva tradicional estacionou. Ela promoveu uma distorção grotesca da verdadeira moralidade e pôde fazer isso somente porque os seus fundamentos estavam podres (Flew, 1967). E as coisas permaneceram assim durante três quartos de um século. Agora, entretanto, chegou a hora de a questão ser reaberta. Vejamos por quê.

A evolução da moralidade

Precisamos começar com a ciência, mais especificamente com a evolução do senso ou da capacidade moral humana. De fato, como Darwin apontou, contrariamente às interpretações de Spencer sobre o processo evolutivo, embora o processo possa começar com a competição por recursos limitados – uma luta pela existência (mais estritamente, uma luta pela reprodução) – isso, certamente, não implica que sempre haja combate corpo a corpo feroz e contínuo. Mais particularmente entre os membros da mesma espécie, muito mais benefícios pessoais podem ser alcançados, com mais frequência, através de um processo de cooperação – um tipo de auto interesse esclarecido, por assim dizer (Darwin, 1859; 1871). Assim, por exemplo, se o meu coespecífico e eu lutamos até que um de nós seja totalmente vencido, nenhum realmente ganha, porque mesmo o vencedor provavelmente estará tão machucado e exausto que futuras tarefas seriam penosas. Ao passo que, se cooperarmos, embora devamos compartilhar o espólio, não haverá perdedores e ambos se beneficiarão (Trivers, 1971; Wilson, 1975; Dawkins, 1976; Ruse, 1979b).

Toda essa cooperação por ganho evolutivo pessoal é conhecida tecnicamente por “altruísmo”. Enfatizo que esse termo está enraizado em uma metáfora, mesmo que agora ele tenha recém recebido o seu o significado biológico formal. Não há implicação de que o “altruísmo” evolutivo (trabalhando conjuntamente por recompensa biológica) esteja inevitavelmente associado ao altruísmo moral (sendo esse o sentido original literal, o que implica um ser consciente ajudando outros porque isso é correto e o adequado a ser feito). A conexão não é mais do que aquela entre a noção de “trabalho” da Física e aquela do trabalho que você e eu fazemos no quintal nos sábados à tarde quando cortamos a grama.

Entretanto, assim como cortar a grama envolve trabalho no sentido da Física, também os atuais estudiosos da evolução do comportamento social (“sociobiólogos”) argumentam que o altruísmo moral (literal) poderia ser uma forma pela qual o “altruísmo” biológico (metafórico) poderia ser alcançado (Wilson, 1978; Ruse & Wilson, 1986). Além disso, eles argumentam que, em humanos, e talvez também em grandes símios, tal possibilidade é uma realidade. Literalmente, o altruísmo moral é a melhor maneira pela qual a cooperação biológica vantajosa é obtida. Humanos são tipos de animais que se beneficiam biologicamente da cooperação dentro de seus grupos, e o altruísmo moral, literal, é a forma pela qual alcançamos esse objetivo (Lovejoy, 1981).  

Não houve inevitabilidade nas inclinações altruístas que se desenvolveram como uma das adaptações humanas. Julgando pelo que sabemos de nós mesmos e de outros animais, houve numerosos outros caminhos pelos quais o “altruísmo” biológico poderia ter ocorrido (Lumsden & Wilson, 1983). Evidentemente, os humanos poderiam ter tomado o caminho das formigas. Elas são altamente sociais, tendo levado o “altruísmo” ao seu mais alto grau através do que se pode chamar de “programação genética”. Formigas são como máquinas, trabalhando em seus formigueiros de acordo com disposições inatas, acionadas por substâncias químicas (feromônios) e similares (Wilson, 1971).     

Há grandes vantagens biológicas nesse tipo de funcionamento: ele elimina a necessidade de aprendizagem, reduz erros e muito mais. Infelizmente, entretanto, isso tudo ocorre às custas de qualquer tipo de flexibilidade. Se as circunstâncias mudam, a formigas individuais não conseguem responder. Isso não importa muito no caso das formigas, já que (biologicamente falando) elas são baratas de produzir. Lamentavelmente, humanos requerem investimentos biológicos significativos, e, aparentemente, a produção do “altruísmo” através de forças inatas e inalteráveis gera considerável risco.

Como não temos a opção de sermos como as formigas, nós humanos poderíamos, teoricamente, ter alcançado o “altruísmo” indo diretamente para o outro extremo. Poderíamos ter desenvolvido supercérebros que calculariam racionalmente, em cada momento, se um certo curso de ação fosse de nosso interesse. “Devo ajudá-lo a se preparar para um teste difícil? O que eu ganho com isso? Você irá me pagar? Eu precisarei de ajuda de volta? Ou o quê?” Nesse caso, há simplesmente um cálculo desinteressado de ganhos pessoais. Entretanto, claramente não evoluímos desse jeito. Fora isso, tal supercérebro teria um alto custo biológico e poderia não ser tão eficiente. No momento em que eu teria decidido salvar ou não uma criança de ser atropelada pelo ônibus em alta velocidade, o terrível evento já teria ocorrido (Lumsden & Wilson, 1981; Ruse & Wilson, 1986).

Parece, portanto, que a evolução humana foi conduzida para uma posição intermediária. De modo a alcançar o “altruísmo”, somos altruístas! Para que cooperássemos em vista de fins biológicos, a evolução nos preencheu com pensamentos sobre o certo e o errado, sobre a necessidade de ajudar nossos companheiros e assim por diante. Obviamente, não somos totalmente egoístas. De fato, graças à luta pela reprodução, nossa disposição normal é a de cuidarmos de nós mesmos. Entretanto, é do nosso interesse biológico cooperar. Assim, evoluímos disposições mentais inatas (o que os sociobiólogos Charles Lumsden e Edward O. Wilson chamam de “regras epigenéticas”) que nos inclinam a cooperar em nome dessa coisa que chamamos de moralidade (Lumsden & Wilson, 1981). Não temos escolha sobre a moralidade da qual temos consciência. Mas, ao contrário das formigas, certamente podemos escolher se obedecemos ou não ao que nossa consciência dita. Não estamos cegamente presos aos nossos cursos de ação da mesma forma que robôs. Somos inclinados a nos comportar moralmente, mas não predestinados a tal política. 

Esse, então, é o ponto do biólogo (darwinista) contemporâneo sobre a evolução da moralidade. Nosso senso moral, nossa natureza altruísta, é uma adaptação – uma característica que nos ajuda na luta pela existência e pela reprodução – não menos do que nossas mãos e olhos, dentes e pés. Trata-se de um custo-benefício que nos faz cooperar e que evita tanto as armadilhas da ação cega quanto o custo de um supercérebro de pura racionalidade.

Ética substantiva

Mas o que isso tudo tem a ver com as questões que os filósofos consideram urgentes e interessantes? Vamos conferir a questão científica esboçada na última seção. O que dizer da ética substantiva e, mais particularmente, da metaética? Se pensarmos que o que acabou de ser dito tem alguma relevância para as fundamentações, então certamente violamos a lei de Hume e caímos na falácia naturalista da mesma forma que o spenceriano.

Voltando-nos, primeiro, para as normas morais endossadas pelo evolucionista contemporâneo, não deveríamos nos assombrar com o passado. Como acabamos de ver, a questão toda da abordagem atual é a de que transcendemos uma difícil luta pela existência – em pensamento e na prática. Com certeza, humanos são egoístas e violentos às vezes. Isso já foi admitido. Mas, não menos do que o moralista, os evolucionistas negam que esse lado obscuro dos seres humanos tenha a ver com impulsos morais. O que entusiasma o evolucionista é o fato de que temos sentimentos de obrigação moral sobrepostos à nossa natureza biológica bruta, nos inclinando a sermos decentes por razões altruístas.

Qual é o verdadeiro conteúdo (falando substantivamente) de uma ética evolutiva contemporânea? Nesse ponto, voltamo-nos aos filósofos para nos orientarem! Afinal de contas, eles são as pessoas cuja intenção é desvelar as regras básicas que governam nossas vidas éticas. O evolucionista pode modificar ou até mesmo rejeitar as alegações dos filósofos; mas, considerando a hipótese (empírica) central de que a moralidade normal, usual, é aquela que nossa biologia usa para promover o “altruísmo”, o pressuposto deve ser que as descobertas dos filósofos serão mais esclarecedoras.

De fato, não é preciso ter receio. As alegações de alguns dos principais pensadores contemporâneos soam quase que como se eles estivessem preparados expressamente para endossar a visão do evolucionista – ponto que esses próprios pensadores reconheceram. Particularmente, deixe-me chamar sua atenção para as ideias de John Rawls, cuja Uma teoria da justiça, merecidamente, é reconhecida como a maior obra de filosofia moral da última década. Rawls escreve:

[…] a ideia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade […] são os princípios que pessoas livres e racionais, interessadas em promover seus próprios interesses, aceitariam em uma situação inicial de igualdade como definidores das condições fundamentais de sua associação. Esses princípios devem reger todos os acordos subsequentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem realizar e as formas de governo que se podem instituir. Chamarei de justiça como equidade essa maneira de encarar os princípios da justiça. (Rawls 1971, p.11; 2016, p. 14)

Como exatamente se postula esses princípios que seriam adotados por “pessoas livres e racionais, interessadas em promover seus próprios interesses”? Aqui, Rawls nos convida a nos colocarmos atrás de um “véu de ignorância”, por assim dizer. Se soubéssemos que nasceríamos em uma sociedade e que seríamos saudáveis, belos, espertos e ricos, optaríamos por um sistema que favoreceria os afortunados. Mas poderíamos ser doentes, feios, estúpidos e pobres. Assim, em nossa ignorância, optaríamos por uma sociedade justa, governada por regras que melhor nos beneficiariam não importando qual posição ou nível poderíamos ter nessa sociedade.

Rawls argumenta que, sob essas condições, uma sociedade justa seria uma que, primeiro, maximizaria a liberdade e a independência, e, segundo, distribuiria o produto da cooperação social de modo que todos se beneficiariam tanto quanto possível. Rawls não está defendendo algum tipo de distribuição comunista, totalmente igualitária, de bens. Em vez disso, a distribuição deveria ajudar os desafortunados bem como os afortunados. Se fosse possível mostrar que a única forma de obter atendimento médico universal e de boa qualidade seria pagando o dobro aos médicos do que a qualquer outra pessoa, então que seja.

Não preciso dizer o quanto isso facilmente se mescla com a abordagem evolutiva. Tanto para o biólogo quanto para o rawlsiano, a questão é a de como se poderia obter a ação correta de grupos de pessoas cuja inclinação natural é (ou melhor, de quem esperaríamos que fosse a inclinação natural) aquela de cuidar de si mesmas. Em ambos os casos, a resposta é encontrada em uma forma de autointeresse iluminado. Nos comportamos moralmente porque, em última instância, isso é melhor para nós do que se não o fizéssemos.

Onde o evolucionista avança e vai além do rawlsiano é vinculando os princípios de justiça ao nosso passado biológico através das regras epigenéticas. Esse é um avanço, pois o próprio Rawls admite que sua análise é restrita ao nível conceitual. Ele deixa sem resposta as principais questões sobre as origens.

Na justiça como equidade, a situação original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria tradicional do contrato social. Essa situação original não é, naturalmente, tida como situação histórica real, muito menos como situação primitiva da cultura. É entendida como situação puramente hipotética, assim caracterizada para levar a determinada concepção de justiça. (Rawls, 1971, p. 12; 2016, p. 14)

Tudo isso soa muito bem. Mas, “situações puramente hipotéticas” dificilmente são satisfatórias. Curiosamente, como apontado acima, o próprio Rawls sugere que a biologia pode ser importante.

Ao defender a maior estabilidade dos princípios de justiça, presumi que certas leis psicológicas são verdadeiras, ou aproximadamente verdadeiras. Não tratarei da questão da estabilidade além desse ponto. Observemos, porém, que alguém poderia perguntar como foi que os seres humanos atingiram a natureza descrita por esses princípios psicológicos. A teoria da evolução indicaria que ocorreu em consequência da seleção natural; a capacidade de ter um senso de justiça e os sentimentos morais é uma adaptação da humanidade ao seu lugar na natureza (Rawls, 1971, pp. 502-503; 2016, p. 620).

Essa é precisamente a abordagem do evolucionista. Não há necessidade de supor contratos hipotéticos. A seleção natural nos fez como somos.

Fundamentações – Metaética

Eu espero que muitos filósofos tradicionais possam sentir-se dispostos a ir tão longe, conjuntamente, com o evolucionista. Entretanto, surgirão obstáculos. O argumento se desenvolveria da seguinte forma: a evolução da ética não teria nada a ver com o status da ética. Posso ser gentil com outros porque a minha biologia me diz para ser gentil e porque os proto-humanos que não foram gentis com os outros falharam em sobreviver e reproduzir. Mas é correto que eu seja gentil com os outros? Eu realmente tenho, de modo objetivo e verdadeiro, obrigações morais? Supor que a história das origens nos esclarece sobre a verdade ou a falsidade seria confundir causas com razões. De uma maneira spenceriana, seria confundir a maneira como as coisas aconteceram com a maneira como as coisas realmente são (1). Já que Rawls foi citado como sendo uma autoridade, vamos recapitular o que ele diz ao final de suas especulações sobre a evolução da moralidade: “Essas observações não são concebidas como razões que justificam a visão contratualista” (Rawls, 1971, p. 504; 2016, p. 622).

Essa é uma resposta poderosa, mas a ética evolutiva contemporânea argumenta que ela não capta toda a força do que a biologia nos diz. Sem dúvida, é verdadeiro que não se pode deduzir alegações morais de alegações factuais (sobre as origens). Entretanto, usando alegações factuais sobre as origens, pode-se fornecer às alegações morais a única explicação fundamental que elas possivelmente teriam. Particularmente, o evolucionista argumenta que, graças à nossa ciência, nos damos conta de que alegações como “você deve maximizar sua liberdade pessoal” não são nada mais do que expressões subjetivas, impressas em nosso pensamento devido aos seus valores adaptativos. Em outras palavras, nos damos conta de que a moralidade não tem fundamentação filosófica objetiva. Ela é apenas uma ilusão, enganando-nos de modo a promover o “altruísmo” biológico.

Essa é uma afirmação forte, então vamos entendê-la por completo. O evolucionista não está mais tentando derivar a moralidade de fundamentações factuais. A sua alegação, agora, é a de que não há nenhum tipo de fundamentações das quais se derivaria a moralidade – sejam essas fundamentações a evolução, a vontade de Deus ou qualquer outra. Já que, claramente, a ética não é inexistente, o evolucionista localiza nossos sentimentos morais na natureza subjetiva da psicologia humana. Nesse nível, a moralidade não tem mais (ou menos) status do que o terror que sentimos diante do desconhecido – outra emoção que, sem dúvida, tem um bom valor adaptativo biológico.

Considere uma analogia. Durante a I Guerra Mundial, muitos pais enlutados se voltaram para o espiritualismo em busca de consolo. Do tabuleiro ouija viriam as seguintes mensagens: “Está tudo bem, mamãe. Eu fui para um lugar muito melhor. Estou apenas esperando por você e pelo papai.” Entendo essas mensagens não como, de fato, palavras do falecido soldado Higgins, falando do além. Ao invés disso, essas mensagens eram ilusórias – uma função da psicologia das pessoas na medida em que projetavam seus desejos. (Podemos, penso, desconsiderar os casos de fraude.)

A lição que pode ser retirada dessa história é a de que não precisamos de nenhuma fundamentação justificatória adicional para “Está tudo bem, mamãe”, mais do que aquela que acabamos de dar. Neste ponto, não precisamos de uma sustentação racional para palavras de consolo. (“Por que está tudo bem?” “Porque estou sentado em uma nuvem, vestido em uma túnica, tocando uma harpa.”) O que precisamos é uma explicação causal para o porquê os enlutados “escutaram” o que escutaram. O ponto do evolucionista é que algo similar é certamente verdadeiro para a ética. Em última análise, não há justificativa racional para a ética no sentido de fundamentos aos quais se poderia apelar através de argumento racional. Tudo o que se pode oferecer é um argumento causal para mostrar por que possuímos crenças éticas. Mas, uma vez que tal argumento é oferecido, podemos ver que isso é tudo que precisamos.

Em certo sentido, portanto, o ponto do evolucionista é que a ética é uma ilusão coletiva da raça humana, moldada e mantida pela seleção natural de modo a promover a reprodução individual. Ainda assim, há mais para se dizer do que isso. Obviamente, “Pisar em criancinhas é errado” não é realmente ilusório tal como “Está tudo bem, mamãe, eu estou bem!”. Entretanto, podemos facilmente mostrar por que a analogia não funciona aqui. A moralidade é uma crença (ou conjunto de crenças) compartilhada pela raça humana, diferentemente das mensagens no tabuleiro ouija. Assim, podemos distinguir entre “Ame as criancinhas”, o que certamente não consideraríamos, normalmente, ilusório, e “Seja gentil com os repolhos às sextas-feiras”, que certamente é o que, normalmente, consideraríamos ilusório. Todos nós (ou quase todos) acreditamos na primeira, mas não na segunda.

Talvez possamos, de modo mais acurado, expressar a tese do evolucionista recuando da afirmação simplória de que a ética é ilusória. O que é realmente importante para o ponto do evolucionista é a alegação de que a ética é ilusória na medida em que ela nos persuade de que ela tem uma referência objetiva. Esse é o ponto crucial da posição biológica. Uma vez que ela é compreendida, tudo se encaixa.

Essa concessão sobre o status ilusório da ética, de forma alguma, enfraquece o ponto do evolucionista. Longe disso! Se pensarmos a respeito, veremos que a própria essência de uma alegação ética como “Ame as criancinhas” é que, qualquer que seja o seu status de verdade, pensamos que ela seja obrigatória porque pensamos que ela tem um status objetivo. “Ame as criancinhas” não é a mesma coisa que “Espinafre é meu vegetal favorito”. Esta é apenas uma questão de preferência subjetiva. Se você não gosta de espinafre, nada acontece. Mas não consideramos a primeira alegação (moral) como sendo apenas uma questão de preferência. Ela é considerada como algo que nos obriga objetivamente – seja tomando como fonte última dessa objetividade a vontade de Deus, ou (se fôssemos platônicos) intuindo relações entre as formas, ou (como G. E. Moore) apreendendo-a de propriedades não-naturais, ou seja o que for.

A alegação do evolucionista, consequentemente, é a de que a moralidade é subjetiva – é tudo uma questão de sensações ou sentimentos humanos – mas ele/ela admite que “objetificamos” a moralidade, para usar um termo descritivo, mas feio. Consideramos que a moralidade tem uma referência objetiva, mesmo que não tenha. Por causa disso, uma análise causal do tipo oferecida pelo evolucionista é apropriada e adequada, enquanto que uma justificação de alegações morais em termos de fundamentação racional não é nem necessária nem apropriada.

Além disso, para completar o assunto, o evolucionista indica que há boas razões (biológicas) pelas quais é parte da nossa natureza objetificar a moralidade. Se não a considerássemos como obrigatória, a ignoraríamos. É precisamente porque pensamos que a moralidade é mais do que meros desejos subjetivos que somos levados a obedecê-la (2).

Reciprocidade

Vamos completar a questão atual da ética evolutiva. Uma série de questões será levantada. Concentrar-me-ei em duas das mais importantes. Primeiro, voltemo-nos a uma questão substantiva.    

Muitas das disputas, nesse nível, terão por base desentendimentos a respeito da posição do evolucionista. Por exemplo, embora o evolucionista seja subjetivista em relação à ética, isso não implica, de modo algum, que ele seja relativista – muito menos um relativista cultural. A questão toda em relação à abordagem evolutiva sobre a ética é que a moralidade não funciona a menos que estejamos todos no jogo (com talvez um ou dois trapaceiros – os assim chamados criminosos ou sociopatas). Além disso, temos que acreditar na moralidade; caso contrário, ela não funcionará. Assim, o evolucionista procura insights morais compartilhados, e as variações culturais são descartadas como meras flutuações provocadas por fatores contingentes que se impõem. 

Do mesmo modo, não há como simplesmente nos livrarmos da moralidade se assim quisermos. Mesmo que tenhamos um insight sobre a nossa natureza biológica, ainda assim é a nossa natureza biológica. Certamente podemos fazer coisas imorais. Fazemos isso o tempo todo. Entretanto, uma política de quebrar persistente e consistentemente as regras pode apenas levar a tensões internas. Platão tinha um bom ponto, na República, quando argumentou que apenas a pessoa verdadeiramente boa é a pessoa verdadeiramente feliz, e que a pessoa verdadeiramente feliz é aquela cujas partes da personalidade (“alma”) funcionam harmoniosamente juntas.

Uma questão muito mais relevante, sobre a qual focarei, diz respeito à reciprocidade. Ninguém deveria ser levado ao erro de pensar que o evolucionista proclama as virtudes (morais ou não) do egoísmo, ou que sua posição implica que, como uma questão de fato contingente, somos totalmente egoístas. Tem sido admitido que os seres humanos têm uma tendência ao egoísmo; mas você não precisa de um evolucionista para dizer isso. O que é surpreendente é que não somos totalmente egoístas. Humanos têm sentimentos genuinamente altruístas para com seus semelhantes. O fato de que, de acordo com o evolucionista, somos levados ao altruísmo moral literal por nossos genes agindo em vista de nossos próprios interesses biológicos não diz nada contra o caráter genuíno de nossos sentimentos. Duvidaríamos da bondade do coração da Madre Teresa se nos fosse dito que ela foi rigidamente disciplinada quando criança?

Entretanto, embora isso seja verdadeiro, uma dúvida incômoda permanece. Olhemos por um momento para os atuais modelos causais propostos pelos sociobiólogos que buscam explicar a evolução do altruísmo. Primeiro, é sugerido que a seleção de parentesco é importante. Parentes compartilham cópias dos mesmos genes. Portanto, na medida em que um parente reproduz, você próprio se reproduz indiretamente, por assim dizer. Portanto, ajudar os parentes levando-os à sobrevivência e à reprodução repercute em seu próprio benefício. Segundo, há o altruísmo recíproco. Simplificadamente, se eu ajudo você (mesmo que você não seja meu parente), então será mais provável que você me ajude – e vice-versa. Juntos, ambos ganhamos, enquanto que, separados, perdemos (3).

Agora, certamente com esses dois mecanismos, a possibilidade de altruísmo genuíno parece interditada. Com a seleção de parentesco, as recompensas vêm através da reprodução dos parentes, então não haveria necessidade de um retorno imediato evidente. Mas o mero amor não-moral não faria tudo que é necessário? Eu amo meus filhos e os ajudo não porque é o certo, mas porque os amo. Como Immanuel Kant (1959) corretamente mostrou, a menos que você esteja realmente atendendo à chamada do dever, não haveria crédito moral. Uma mãe que amamenta alegremente seu bebê não está realizando uma ação moral.

No caso do altruísmo recíproco, os problemas para o eticista evolutivo são ainda mais óbvios. Você faz algo esperando retorno. Isso não é altruísmo genuíno, mas uma barganha direta. Não há nada imoral em uma transação como essa. Se eu pago um quilo de batatas com dinheiro, não há transgressão. Mas também não há nada moral em tal transação. A moralidade significa se arriscar, porque esse é o correto a fazer. A moralidade desaparece se você espera ser pago.

O evolucionista tem respostas para esses tipos de críticas – respostas que fortalecem a sua posição como um todo. Primeiro, é verdadeiro que muito do que fazemos pela nossa família vem do amor, sem pensar no dever. Mas apenas aqueles que não têm filhos pensariam que as obrigações morais nunca fazem parte das relações intrafamiliares. Repetidamente, temos que seguir em frente, e fazemos isso porque é certo. Sem os conceitos de certo e errado, seríamos pais (tios, tias etc.) muito menos bem-sucedidos do que somos. Humanos requerem tanto cuidado na infância que eles defendem um apoio biológico particularmente convincente à moralidade. Se os deveres parentais fossem deixados aos sentimentos de bondade, o sistema entraria em colapso. (Tenho certeza de que ocorreu um processo causal de feedback aqui. Por termos uma capacidade moral, o cuidado infantil pôde ser estendido; e as necessidades de cuidados infantis extensivos estabelecem uma pressão seletiva no sentido de uma maior consciência moral.)

Segundo, é consensual que o altruísmo recíproco falharia se não houvesse retornos – ou modos de reforçar esses retornos. Entretanto, não é necessário supor que tal reciprocidade requeira uma simples demanda de retribuição por favores concedidos. Tirando todo o resto, a moralidade é claramente mais semelhante a uma política de segurança de grupo do que a uma transação de pessoa para pessoa. Eu ajudo você, mas não necessariamente espero que você, pessoalmente, me ajude. Ao invés disso, minha ajuda é jogada no pool geral, por assim dizer, e então estou livre para recorrer à ajuda conforme necessário.

Além disso, o reforço do sistema se dá através da própria moralidade! Eu ajudo você, e eu posso exigir ajuda de volta não porque eu te ajudei ou mesmo porque eu quero ajuda, mas porque é certo que você me ajude. A reciprocidade é mantida por obrigações morais. Se você parar de jogar limpo, logo eu e outros o castigaremos ou o tiraremos da esfera moral. Não fazemos isso porque não gostamos de você, mas porque você é uma má pessoa ou é muito “doente” para reconhecer o jeito certo de fazer as coisas. A moralidade exige que doemos voluntariamente, mas não espera que nos tornemos otários. (E quanto à exigência de Jesus de que perdoemos setenta vezes sete? A pessoa moral responderia que o perdão é uma coisa, mas que, complacentemente, deixar um ato ruim ocorrer quatrocentos e noventa vezes beira à irresponsabilidade criminal. Devemos pôr fim a tal estado terrível de coisas (4).)

Assim, até agora a abordagem do evolucionista disse muito pouco sobre a ética normativa, apropriadamente entendida, o que geraria controvérsia. Mas, deixe-me concluir esta seção apontando para uma implicação que certamente causará debate. Muitos moralistas argumentam que temos uma obrigação igual em relação a todos os seres humanos, indiferentemente de termos relações próximas com eles, compartilhar nacionalidade ou qualquer outra coisa (Singer, 1972). A princípio, minhas obrigações em relação a uma criança desconhecida, digamos, na Etiópia, não seriam menores do que as minhas obrigações em relação ao meu próprio filho. Entretanto, embora muitos (a maioria?) defendam isso da boca para fora, minha suspeita é a de que, sinceramente, essa doutrina faz revirar o estômago do evolucionista. Biologicamente, nossa maior preocupação tem que ser em relação aos nossos próprios parentes, e, em seguida, com aqueles que têm ao menos algum tipo de relação conosco (não necessariamente uma relação de sangue), e, por fim, com os completos estranhos. E os sentimentos de obrigação moral têm de espelhar a biologia.

Agora, passo a especular. Poder-se-ia argumentar que a biologia nos dá um sentido igual de obrigação em relação a todos, e que esse sentido seria, então, filtrado através de fortes sentimentos (não-morais) de ternura em relação aos nossos próprios filhos, seguidos por sentimentos decrescentes em relação a não parentes, terminando com um ar natural de suspeita e indiferença em relação a estranhos. Mas meu palpite é o de que o cuidado que devemos dispensar às nossas crianças é vital demais para ser deixado ao acaso, e que, portanto, esperamos encontrar o que, de fato, encontramos, ou seja, o fato de que nosso senso real de obrigação é variável. Portanto, o que quer que digamos algumas vezes, temos, verdadeiramente, um senso mais forte de obrigação moral em relação a algumas pessoas do que em relação a outras.

É talvez um pouco estranho falar assim, de modo hesitante, sobre nossos próprios sentimentos, incluindo os sentimentos morais. Pode-se pensar que deveríamos ser capazes de especular e falar de modo definitivo. Entretanto, as questões nem sempre são tão simples assim, particularmente quando (como agora) somos defrontados com um caso no qual nossa tecnologia ultrapassou nossa biologia e, consequentemente, nossa moralidade. Cem anos atrás, faria pouco sentido falar em obrigações morais em relação aos etíopes. Agora, conhecemos os etíopes e, pelo menos em algum nível, podemos fazer algo por eles. Mas o que devemos fazer por eles? Dentro dos limites de nossas habilidades, deveríamos fazer por eles o mesmo que fazemos por nós e para os nossos filhos? Suspeito que a maioria das pessoas diria que não. Apresso-me em acrescentar que nenhum evolucionista diria que temos obrigação em relação aos pobres do mundo que morrem de fome. A questão é se temos uma obrigação moral de empobrecer nossas famílias e doar tudo para a Oxfam.

Encerrando esta seção, deixe-me, pelo menos, destacar que, em relação a essa questão das obrigações que variam, o evolucionista não segue uma linha mais rígida do que Rawls. Explicitamente, Rawls trata o parentesco como um caso que merece atenção especial, e ele mesmo admite que está longe de ser óbvio que sua teoria contempla facilmente as relações com o Terceiro Mundo (Rawls, 1980). Não é intuitivamente verdadeiro que, mesmo hipoteticamente, estejamos em uma posição original juntamente com as pessoas da África – ou Índia ou China. Portanto, embora o evolucionista certamente não queira se esconder atrás da figura do filósofo moral mais convencional, ele pode ficar tranquilo com o fato de que está em boa companhia.

Objetividade

Voltemo-nos, agora, para as preocupações metaéticas. A afirmação central do evolucionista é a de que a ética é subjetiva, uma questão de sensações e sentimento, sem um referencial objetivo genuíno. O que distinguiria a ética de outras emoções é nossa crença de que ela teria base objetiva, e é porque pensamos isso que ela funcionaria.  

A objeção mais óbvia e importante a tudo isso é a de que o evolucionista ainda não eliminou o suposto fundamento objetivo da moralidade. É óbvio que a ética é, de certa maneira, subjetiva. Como poderia não ser? Ela é um sistema de crenças mantido por humanos. Mas isso, em si mesmo, não nega que haja algo mais. Considere, analogamente, o caso da percepção. Eu vejo uma maçã. Minhas sensações são subjetivas, e meus órgãos de visão (olhos) se desenvolveram através do processo evolutivo devido a boas razões biológicas. Ainda assim, ninguém negaria que a maçã é independente e objetivamente real. O mesmo não poderia ser verdadeiro em relação à ética? Em última análise, a ética residiria, de modo objetivo, na vontade de Deus ou algo assim. (Nozick, 1981, segue uma linha de argumentação semelhante a essa.)

Vamos dar por resolvido o caso da percepção, embora, cá entre nós, eu suspeite que o evolucionista possa muita bem ter algumas perguntas sobre a existência de um mundo real para além do sujeito de conhecimento. A analogia com a ética ainda não funciona. Imagine dois mundos idênticos, exceto por um ter uma ética objetiva (o que quer que isso possa significar) e o outro, não. Talvez, em um dos mundos, Deus quisesse que cuidássemos dos doentes, e, no outro, ele não se importaria com o que faríamos. O evolucionista argumentaria que, em ambas as situações, teríamos evoluído de forma a pensar que, moralmente, deveríamos cuidar dos doentes. Supor o contrário, que apenas o mundo da ética objetiva nos faria cuidar dos doentes, seria supor que haveria forças extracientíficas atuando, direcionando e guiando o curso da evolução. E essa é uma suposição que é um ultraje para os atuais biólogos (Ruse, 1982).

Em outras palavras, à luz do que sabemos sobre o processo evolutivo, uma fundamentação objetiva tem que ser considerada redundante. Mas, se tudo é uma contradição em termos, ela é uma moralidade objetiva redundante: “o único motivo para amar seu próximo é que Deus quer isso, mas você pensará que deve amá-lo independentemente da vontade de Deus”. De fato, se levarmos a sério a ideia de que os humanos são produto da seleção natural, a situação é ainda pior. Somos o que somos por causa de circunstâncias contingentes, não porque, necessariamente, temos que ser como somos. Suponha que, ao invés de termos evoluído de primatas que viviam nas savanas (o que de fato aconteceu), tivéssemos evoluído de habitantes de cavernas. Nossa natureza e nossa moralidade poderiam ter sido muito diferentes. Ou tomemos o exemplo dos cupins (para pegar um caso extremo em relação à perspectiva humana). Eles têm que comer as fezes uns dos outros porque perdem certos parasitas, vitais para a digestão, quando ocorre a muda. Se os humanos tivessem seguido o mesmo curso, nossos mais altos imperativos éticos seriam, sem dúvida, muito estranhos.

O que isso tudo significa é que, seja o que for que dite, verdadeiramente, a moralidade objetiva, poderíamos ter evoluído de tal maneira que perderíamos de vista completamente sua real essência. Poderíamos ter nos desenvolvido de forma que pensaríamos que deveríamos odiar nossos próximos, enquanto que, na verdade, deveríamos amá-los. Pior do que isso, talvez deveríamos realmente odiar nossos semelhantes, mesmo que pensássemos que deveríamos amá-los! Claramente, essa possibilidade reduz a objetividade na ética a um conjunto de paradoxos.

Mas isso, de fato, ocorre? Vamos supor que o evolucionista tenha um bom ponto contra a pessoa que argumentasse que as fundamentações da moralidade estariam em fontes externas aos humanos, sejam essas fontes a vontade de Deus, as relações entre formas platônicas, propriedades não-naturais, ou qualquer outra fonte. Entretanto, há pelo menos uma tentativa bem conhecida de atingir a objetividade (de algum tipo) sem a suposição de algo externo. Refiro-me, é claro, à teorização metaética de Immanuel Kant (1949; 1959). Ele argumentou que o princípio supremo da moralidade, o assim chamado imperativo categórico, tem uma necessidade que transcende totalmente a contingência dos desejos humanos. Ele é sintético a priori, sendo que, com isso, Kant quis dizer que a moralidade é uma condição que entra em jogo, necessariamente, quando seres racionais interagem. Ele argumenta que um desrespeito à moralidade leva a “contradições”, ou seja, a um colapso no funcionamento social. Assim, vemos que a moralidade não seria apenas um capricho subjetivo, mas algo que existiria na própria essência da interação racional. Para contrariar um exemplo oferecido acima, não poderíamos ter evoluído como puros seres odiadores, porque tais seres simplesmente não poderiam interagir socialmente.

Já que, mais de uma vez neste texto, o evolucionista invocou as ideias de Rawls em seu auxílio, um crítico poderia, com razão, apontar que (deixado de lado questões pendentes em Uma teoria da justiça), mais recentemente Rawls tentou, de modo explícito, colocar a moralidade sobre uma fundamentação kantiana. De modo geral, ele escreveu:

o que justifica uma concepção da justiça não é, portanto, que ela seja verdadeira em relação a uma determinada ordem anterior a nós, mas que esteja de acordo com a nossa compreensão em profundidade de nós mesmos e o fato de que reconheçamos que, dadas a nossa história e as tradições que estão na base da nossa vida pública, ela é a concepção mais razoável para nós. (Rawls, 1980, p. 519; 2000, p. 51)

Então, sendo mais específico, Rawls afirma que:

[Uma] doutrina kantiana interpreta a noção de objetividade no sentido de um ponto de vista social construído de maneira apropriada e se impondo em relação a todos os pontos de vista individuais ou associativos. Essa análise da objetividade traz a explicação de que é preferível apresentar os princípios de justiça não como verdadeiros, mas sim como os mais razoáveis para nós, dada a nossa concepção de pessoas como membros livres, iguais e plenamente cooperativos de uma sociedade democrática. (Rawls, 1980, p. 554; 2000, p. 111)

Assim, em certo sentido, tentamos mostrar tanto que a moralidade é razoável, quanto que ela é mais do que uma questão de mero desejo ou gosto, como se fosse uma preferência por vegetais.

Respondendo ao kantiano/rawlsiano, a assim chamada posição construtivista, o evolucionista desejaria levantar duas questões. Primeiro, há muito nessa posição construtivista com o qual ele/ela, de modo sincero, simpatizaria! Tanto o construtivista quanto o evolucionista concordariam que a moralidade não deveria ser buscada fora dos seres humanos, e, ainda assim, ambos concordariam que a moralidade seria mais do que meros sentimentos. Além disso, ambos tentariam argumentar mostrando que a moralidade seria a estratégia mais sensata para um indivíduo seguir. Ser agradável geraria dividendos – embora, como mostram tanto o construtivista quanto o evolucionista, nos comportaríamos moralmente por bons motivos, e não porque estaríamos conscientes dos benefícios.

Segundo, apesar de toda a simpatia, o evolucionista se sentiria compelido a dar um passo atrás em relação a todas as conclusões do posicionamento construtivista. O evolucionista argumentaria que a moralidade (como a conhecemos) seria a política mais sensata, de acordo com o que nós, seres humanos, somos hoje. Entretanto, ele/ela daria um passo atrás em relação à alegação do construtivista de que a moralidade (humana) seria a estratégia otimizada para qualquer ser racional. E quanto ao caso dos cupins-humanos, por exemplo? Eles poderiam ter sido perfeitamente racionais. Possivelmente, a resposta seria a de que o senso de obrigação dos cupins-humanos de comer alimentos estranhos seria protegido por uma proibição contra o suicídio, que Kant certamente pensa que decorre do imperativo categórico. Portanto, o construtivista admitiria que nossa natureza distinta (no caso, humana) daria à nossa moralidade real uma aparência correspondentemente diferente; mas ele argumentaria que, subjacente às diferenças, haveria uma moralidade compartilhada. O princípio seria o mesmo de quando todo mundo (incluindo o evolucionista) explicasse as diferenças entre normas culturais como sendo o produto de circunstâncias especiais, e não o resultado de diversos compromissos morais finais (Taylor, 1958).

Ainda assim, o evolucionista continuaria o desafio. Se o construtivista argumentasse que a única coisa que conta seriam os seres racionais trabalhando juntos e que sua natureza contingente fosse irrelevante, então seria difícil ver por que a moralidade necessariamente emergiria. Suponha que tenhamos evoluído e nos tornado seres totalmente racionais, como os supercérebros mencionados anteriormente, e que calcularíamos chances, riscos e benefícios o tempo todo. Não seríamos nem morais nem imorais, e não seríamos impelidos por nenhuma obrigação.  

Obviamente, não somos assim. Aparentemente, portanto, precisamos levar em conta a natureza contingente de um ser – não importando o quão racional ele possa ser – de modo a obter algum tipo de moralidade. Mas essa é a ponta do iceberg para moralidades distintas da moralidade humana. Pense, por exemplo, em como poderíamos livrar a sociedade de puros odiadores de modo que um tipo de moralidade pudesse emergir – e que esse tipo de moralidade fosse diferente da nossa. Suponha que seja parte de nossa natureza odiar os outros, e que pensássemos que temos a obrigação de fazer isso. Uma “contradição” kantiana, ou seja, o colapso da socialidade, ainda poderia ser evitada e a cooperação ser alcançada porque sabemos que os outros nos odeiam e que, assim, sentimos que é melhor trabalharmos cautelosamente juntos de modo a evitar sua ira. Se isso parece forçado, considere como funcionam os supostos superpoderes atualmente. Tudo seria perfeitamente racional e funcionaria (de certo modo). Ainda assim, haveria pouca coisa que nós humanos reconheceríamos como “moral” no meio disso tudo.

Certamente, poder-se-ia ainda apontar que tal sociedade de puros odiadores terminaria com regras muito semelhantes àquelas que o construtivista endossa sobre a liberdade etc. Mas essas regras não seriam morais em sentido algum. Elas seriam, explicitamente, regras de conveniência, de interesse próprio. Dou liberdade a você não porque me preocupo com você, ou o respeito ou porque penso que devo tratá-lo como um indivíduo que possui valor. Eu te odeio! E eu penso que devo odiá-lo. Dou liberdade a você simplesmente porque é do meu interesse conscientemente pensado fazê-lo. Essa pode ser uma política sensata e prudente. Não é uma política moral.

O evolucionista conclui, contra o construtivista, que nossa moralidade é uma função de nossa natureza humana verdadeira e que ela não pode ser separada das contingências de nossa evolução. A moralidade, como a conhecemos, não pode ter a necessidade ou a objetividade buscada pelo kantiano e pelo rawlsiano.

Conclusão

Nossa biologia está trabalhando duro para fazer com que a posição do evolucionista pareça implausível. Estamos convencidos de que, de certa forma, a moralidade realmente é objetiva. Entretanto, se levarmos a sério a biologia atual, veremos como somos filhos do nosso passado. Aprendemos como a verdadeira situação realmente é. A evolução e a ética estão unidas, pelo menos, em uma simbiose proveitosa, e isso ocorre sem se comprometer com as falácias do século passado.

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Notas

1) Versões desse argumento ocorrem em Raphael (1958), Quinton (1966), Singer (1971) e – coro ao dizer isso – em Ruse (1979b).

2) Ver Murphy (1982) para mais detalhes sobre o argumento de que a explicação causal pode ser tudo que pode ser oferecido à ética, e Mackie (1977), para a discussão a respeito da “objetificação” em ética.

3) Esses dois mecanismos são discutidos em detalhe em Ruse (1979b). Eles estão relacionados ao comportamento humano, com alguns detalhes, em Wilson (1978).

4) Essa crítica assume que o cristão, ao invés de reagir, é obrigado a perdoar indefinidamente. Os estudos modernos sugerem que essa está longe de ser a mensagem verdadeira de Jesus. Ver Betz (1985) para mais detalhes sobre essa questão, e Mackie (1978) para mais detalhes sobre a crítica de inspiração sociobiológica de que o cristianismo nos faz exigências não razoáveis. Essa última linha de argumento obviamente é semelhante à de Sigmund Freud em Civilização e seus descontentes (1961).

Agradecimentos

Os tradutores e as editoras do Boletim de História e Filosofia da Biologia agradecem a Michael Ruse e ao periódico Zygon a cessão de direitos autorais para a publicação deste artigo em português.

Citação bibliográfica deste artigo:

RUSE,  Michael. Ética evolutiva: o ressurgir da fênix. Trad. Matheus Adriano Ferreira Coelho, Iago Pereira da Silva, Walter Valdevino Oliveira Silva e Maria Irene Baggio. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 15 (3), set. 2021. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]