ISSN 1982-1026

Boletim de História e Filosofia da Biologia

Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)

Resenha de artigo

“Conectando a recapitulação haeckeliana ao evolucionismo social no Brasil”

 

Anderson Ricardo Carlos

Doutorando do Programa de Pós-Graduação Interunidades de Ensino de Ciências

Universidade de São Paulo

E-mail: andersonr.carlos@usp.br

Referência do artigo original:

WAIZBORT, Ricardo Francisco; LUZ, Maurício Roberto Motta Pinto da; EDLER, Flavio Coelho; SILVA, Helio Ricardo. The First Brazilian Thesis of Evolution: Haeckel’s Recapitulation Theory and Its Relations with the Idea of Progress. Journal of The History of Biology, 54: 447-481, 2021.

Artigo de Ricardo Waizbort, Maurício Luz, Flavio Edler e Helio Silva, “The First Brazilian Thesis of Evolution: Haeckel’s Recapitulation Theory and Its Relations with the Idea of Progress” (A primeira tese brasileira de evolução: A teoria de recapitulação de Haeckel e suas relações com a ideia de progresso), publicado no Journal of the History of Biology, neste ano de 2021, proporciona uma contribuição relevante para a História da Ciência no Brasil. O artigo analisa uma tese defendida em 1890 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, intitulada Na evolução ontogenética da embriologia humana em suas relações com a filogenia e escrita pelo médico Affonso Regulo de Oliveira Fausto (1866-1930). O documento histórico é considerado, até o momento, a primeira tese produzida no Brasil especialmente voltada à evolução.

Apesar do trabalho de Fausto já ser conhecido na história da ciência do Brasil, um dos aspectos inovadores do artigo de Waizbort e colaboradores é o enfoque nas fontes e nos conceitos que a tese fornece, sobretudo no mecanismo de recapitulação, no qual se propunha que o embrião humano passa pelos estágios dos seus ancestrais evolutivos até atingir a forma humana. Os autores expõem também, de maneira hábil, como o repertório epistêmico de Fausto estava conectado com o contexto sociopolítico brasileiro. Posto que a tese do médico não é categorizada como um trabalho empírico ou notório por sua originalidade, sua escrita marcou referências a nomes importantes das teorias evolucionistas, evidenciando a influência desses autores na conjuntura histórica e científica brasileira. Entre essas alusões, estavam Charles Darwin (1809-1882), Herbert Spencer (1820-1903) e, particularmente, Ernst Haeckel (1834-1919). O último, afamado na história da biologia como divulgador das ideias de Darwin na Alemanha e defensor da ideia de recapitulação, foi inspirado por filósofos naturais conterrâneos, com destaque para Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Karl Ernst Ritter Von Bauer (1792-1876), os quais também acabaram se revelando como fontes para o trabalho de Fausto. Declarando preferência às teorias de Haeckel em comparação a Darwin, o médico utiliza na sua tese, especialmente, referências ao livro The History of Creation (1884).

De início, Waizbort e colaboradores dissertam sobre a cenário do final do século XIX para o qual o historiador da biologia Peter Bowler cunhou a expressão “eclipse do darwinismo”, que segue utilizada até hoje na historiografia da ciência (Bowler, 1989, p. 246). Nesse momento, segundo os autores, houve intenso debate sobre diversos aspectos da teoria evolucionista de Darwin, especialmente, para o entendimento da evolução humana, além da própria origem da diversidade das espécies e suas adaptações ao ambiente. Simultaneamente, o pensamento evolutivo conectou-se de forma mais explícita ao pensamento social em vários países, dando margem a teorias de hierarquização social e atribuindo, a princípio, conotação negativa à miscigenação.

No âmbito brasileiro, os autores do artigo apontam as Conferências Populares da Freguesia da Glória, no Rio de Janeiro, como uma das principais e pioneiras formas de divulgação das ideias evolutivas no Brasil, iniciadas durante a década de 1870. Com relevância, também estão as publicações darwinianas de Fritz Müller, cujo trabalho, intitulado Fur Darwin (Para Darwin), os autores acreditam ter sido conhecido por Fausto através dos trabalhos de Haeckel. Ademais, o movimento jurídico e filosófico conhecido como Escola de Recife, de âmbito nacional, incorporou ideias evolucionistas nos seus discursos e trabalhos publicados em fins do século XIX. Autores como Collichio (1988), chegam a creditar Fausto como pertencente a essa escola, que incluía autores da vertente da antropologia criminal, muitos deles defensores do médico criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Para eles, o crime era devido a uma fundação biológica baseada na inferioridade de tipos humanos, marcadamente não-brancos.

A tese de Fausto era dividida em três partes: na primeira discutia-se a evolução e filogenia; na segunda, trazia-se um esboço da ontogenia humana; já na terceira parte, discutia-se a ontogenética e o paralelismo filogenético. Ao tratar da recapitulação, o autor brasileiro se alinhava ao monismo proposto por Haeckel: a teoria filosófica que apontava a existência de apenas uma causa natural para explicar tanto fenômenos naturais quanto aqueles relacionados a mente, religião, sociedade e relações humanas. O médico se referia a muitos fenômenos biológicos como uma base para traçar um paralelo entre o desenvolvimento embriológico e a filogenia humana. Fazendo referência direta à lei biogenética estabelecida por Haeckel, a tese declarava que a evolução embriológica de um indivíduo seria a repetição da história evolutiva das espécies. Nesse contexto, trechos do trabalho de Haeckel reforçavam a centralidade do conceito de herança de caracteres adquiridos para a construção do mecanismo de adaptação. Segundo filósofos como Gustavo Caponi (2014), Haeckel misturava os mecanismos de adaptação evolutiva e adaptação fisiológica.

Apropriando-se das ideias de recapitulação de Haeckel (Figura 1), Fausto propunha que este conceito seria governado por dois mecanismos: a “adição terminal”, na qual as características seriam absorvidas no fim do processo embriológico, e a “condensação”, que ocorreria para encaixar nos limites de tempo da ontogenia. Dada tal conceituação, Fausto ancorava a conceituação biológica como lupa de análise para o entendimento das questões sociopolíticas brasileiras. O vínculo baseava-se numa alegoria ao povo brasileiro, comparando-se ao conceito de “monera” de Haeckel, que seriam estágios primitivos biológicos, ou seja, estágios primitivos da ontogenia humana. Citando Fausto Cardoso (1864-1906), outro integrante da Escola de Recife, Fausto estabelecia um paralelo entre a recapitulação e a história política global. Para ele, as ditaduras militares seriam os estágios ontogênicos de uma nação em direção à sua transição à democracia, caracterizada como república constitucional. O pensamento de Fausto, desse modo, refletia diretamente as ideias do período, visto que a república brasileira havia sido proclamada um ano antes da publicação de sua tese.

Fig. 1. Ilustrações de embriões de cães, humanos, tartaruga e galinha, apresentadas por Haeckel em 1868 como prova convincente da evolução. Fonte: Wikimedia Commons.

Em suma, o artigo inova em trazer a influência da ideia de recapitulação no pensamento social e médico brasileiro. Para Waizbort e demais autores, o mecanismo de recapitulação acabou fornecendo argumentos científicos, baseados na ciência positivista da época, para reforçar a ideia de que povos não-brancos ou tipos criminais eram associados à ideia de infância ou de estágios evolutivos inferiores, como de animais selvagens. A explícita associação sociopolítica aos conceitos da evolução estava imersa no contexto histórico do surgimento dos programas eugênicos. Isso não é exclusividade do trabalho de Fausto. Carlos e Prestes (2021) já notaram a utilização de argumentos de fundamentação biológica, já no século XIX, dialogando com propostas eugênicas. Os autores mostraram tal aproximação a partir de trechos do pensamento de Darwin em The Descent Of Man com o trabalho de Francis Galton (1822-1911) em Hereditary Genius, livro visto como grande influência na fortificação dos programas eugênicos. No Brasil, a eclosão da eugenia tinha alicerce, majoritariamente, na ideia de modernidade, de progresso social e de embranquecimento da população brasileira, como evidenciada com a vinda dos imigrantes europeus. Esses aspectos históricos marcantes do início do século XX, uma década antes, já eram anunciados no trabalho de Fausto.

Agradecimentos

O autor da resenha agradece ao apoio financeiro à bolsa de pesquisa de doutorado, vinculada ao processo 2020/10406-8 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cuja pesquisa derivou a resenha desse artigo.

Referências bibliográficas

BOWLER, Peter J. Evolution: The History of an Idea. Los Angeles: University of California Press, 1989.

CAPONI, Gustavo. Contra el Neolamarckismo Escolar: La Representación Fisiológica de la Adaptación como Obstáculo Epistemológico para la Comprensión de la Teoría de la Selección Natural. Acta Scientiae, 16 (2): 189-199, 2014.

CARLOS, Anderson R.; PRESTES, Maria Elice de B. Contextualizando The descent of man, de Charles Darwin: Debates calorosos persistem após 150 anos de sua publicação. Filosofia e História da Biologia, 16 (2): 131-171, 2021. DOI: 10.11606/issn.2178-6224v16i2p131-171. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/fhb/article/view/fhb-v16-n2-01>. Acesso em: 14 dez. 2021.

COLLICHIO, Terezinha Alves Ferreira. Miranda Azevedo e o Darwinismo no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988.

Citação bibliográfica deste artigo:

CARLOS, Anderson Ricardo. Conectando a recapitulação haeckeliana ao evolucionismo social no Brasil. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 15 (4), dez. 2021. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]