ISSN 1982-1026
Boletim de História e Filosofia da Biologia
Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)
Resenha de artigo: “Trouxeste a chave?”, por Bruno Fancio Lima e Marcelo Monetti Pavani
Bruno Fancio Lima [1,2] e Marcelo Monetti Pavani [1]
[1] LaHBE – Laboratório de História da Biologia e Ensino, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo
[2] Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interunidades de Ensino de Ciências, USP
Referência do artigo original:
KAMARIZA, Mireille; CRAWFORD Lorin; JONES, David; FINUCANE, Hilary. Misuse of the term ‘trans-ethnic’ in genomics research. Nature Genetics. 53: 1520-1521, 2021.
No início do terceiro capítulo de As Palavras e as Coisas, Michel Foucault nos ensina que, no domínio da cultura, a mobilização de signos – compreendidos, conforme Saussure (2006, p. 81), como a relação entre um conceito que se quer representar (o significado) e a imagem acústica utilizada para representá-lo (o significante) – para a produção de discursos se dá no espaço construído entre dois limites extremos opostos de enunciação: a loucura e a poesia (Foucault, 2016, pp. 67-68). No discurso poético, a partir de signos cujos significados são, em princípio, bem definidos, o poeta procura perscrutar misteriosas, inusitadas possibilidades de associação. As alegorias poéticas assim construídas pretendem expandir os limites de representação de cada um dos signos mobilizados: ao criar tensões incomuns entre os signos, produzem novas possibilidades de significação através de uma concatenação específica. Por outro lado, no discurso da loucura nenhuma associação entre significantes e significados é estável: louco é aquele que se dispensa, no exercício representacional que faz da linguagem, de compartilhar da comunidade social construída a partir de consensos semânticos estabelecidos, ainda que de modo tácito. O discurso do louco produz o efeito oposto ao da alegoria poética: faz com que nos percamos no denso emaranhado de associações entre significantes e significados, cujo sentido nos é opaco.
O discurso da ciência (como outros em circulação nas sociedades) se inscreve em algum lugar desse espaço entre o discurso alegórico da poesia e o discurso caótico da loucura. Por isso, procura estabelecer, tanto quanto possível, uma correspondência algo estável entre significantes e significados: os signos resultantes precisam pretender representar unidades de significação. Assim, signos delimitam cortes num espaço contínuo de significados, passando a constituir, eles próprios, valor semântico. A ciência proporá hipóteses sobre sua posição no interior dessa colcha de relações multivariadas. O próprio valor de representação do signo pode ser avaliado, eventualmente revisto ou mesmo descartado em favor de outras relações de significação. Daí a historicidade inerente aos discursos, incluso aí o científico: o tempo trata de alterar os signos e seu conteúdo de significação; trata de mudar o tear por meio do qual os tecidos discursivos são construídos.
É a partir dessa perspectiva que queremos comentar a discussão de Mireille Kamariza e colaboradores sobre a pertinência da utilização do termo “trans-étnico” (trans-ethnic) em estudos genéticos de populações humanas. Como mostra a autora, em conjunto aos co-autores do artigo “Misuse of the term ‘trans-ethnic’ in genomic research” (Uso indevido do termo “trans-étnico” na pesquisa genômica), essa expressão se tornou frequente, nos últimos anos, em trabalhos que tratam de genética humana. O termo “trans-étnico” tem sido adotado para descrever métodos de comparação de dados provenientes de conjuntos de indivíduos de diferentes ancestralidades. Trata-se de uma tentativa de substituir outro termo, “trans-racial”. A preocupação dos autores se relaciona ao aumento do valor heurístico que a mobilização de “trans-étnico” empresta aos trabalhos que o utilizam: o recorte semântico, definido pelo uso dessa expressão, seria adequado para significar o conjunto de indivíduos que se pretende representar? A resposta dos autores é peremptória: não.
São várias as razões apontadas pelos autores para essa resposta. Uma delas, o emprego alternativo do prefixo “trans”, que na tradição lexical de língua inglesa pode representar combinação ou comparação. Outra, o uso polissêmico da palavra “etnia” na tradição de diferentes áreas de conhecimento, em diferentes países. No entanto, a que queremos destacar se refere à incongruência entre o significado de “etnia”, tal como utilizado nas ciências sociais – Eriksen (2010, p. 16) define “etnia” como “uma relação social entre pessoas que se consideram essencialmente distinguíveis de membros de outros grupos que conhecem e com os quais entram em contato” – e o de “ancestralidade”, tal como caracterizado pela genética: a conexão entre indivíduos a partir de relações de parentesco e compartilhamento de genes. No artigo, os autores apontam que “duas pessoas com ancestralidade similar podem se auto identificar com diferentes grupos étnicos, enquanto outras, com diferentes ancestrais, podem se identificar com o mesmo grupo étnico” (Kamariza et al., 2021, p. 1521).
No Brasil, por exemplo, essa incongruência entre auto identificação étnica e ancestralidade já foi extensivamente notada. Sergio Pena, em seu livro Retrato Molecular do Brasil, de 2001, mostrou, a partir da análise de marcadores genéticos do DNA mitocondrial, que, para brasileiros autodenominados brancos, cerca de 60% das matrilinhagens são de origem africana ou ameríndia. Assim como outros autores (Parra et al., 2003; Pimenta et al., 2006), Ricardo Ventura Santos e colaboradores reforçam a ideia de que, no Brasil, a identificação de um indivíduo com uma etnia (a partir de marcadores fenotípicos como a cor da pele) tem baixa correspondência com a ancestralidade aferida a partir de marcadores genéticos (Santos et al., 2009, p. 27). Os resultados desses estudos, portanto, ilustram a pertinência da preocupação original do grupo de Kamariza e dão suporte à sua afirmação de que o uso do termo “trans-étnico” em estudos genéticos é “ambíguo e inacurado” (Kamariza et al., 2021, p. 1521).
Outro aspecto importante, mobilizado pelos autores para justificar a preocupação com o valor heurístico de signos utilizados para identificar diferenças entre populações humanas, tem raiz histórica. “Raça” é um signo utilizado como categoria descritora de grupos humanos desde o século XVI. Seu conteúdo semântico, no entanto, podemos acrescentar, é construído historicamente e varia em função do corpo social que o define (Turda & Quine, 2018, p. 13). Com a redescoberta do mendelismo, o desenvolvimento inicial da genética e sua articulação incipiente com a teoria evolutiva darwiniana (Bowler, 1983; Provine, 1973), especialmente no período entreguerras, a esse significante foi associado um novo e muito específico recorte de significação. A designação de “raça” – agora como um fenômeno biológico relacionado à linhagem genética a qual pertence um dado indivíduo – passou a ser articulada com concepções ideológicas que reduzem indivíduos a estereótipos hierarquizados. Assim, essa nova ideia expressa por “raça” foi extensamente utilizada para justificar sistemas de exploração (no movimento neocolonial europeu, na primeira metade do século XX), de segregação (como o que ocorreu em vários estados dos Estados Unidos, entre as décadas de 1920 e 1960) e de extermínio de grupos humanos (como durante a experiência nazista alemã, durante as décadas de 1930 e 1940). Conhecidos os produtos nefastos da ciência nazista, têm-se procurado desconectar o signo “raça” de qualquer traço semântico derivado das ciências naturais (embora ele ainda persista, ressignificado, no âmbito das ciências sociais, como apontamos abaixo). Esse movimento – iniciado já em 1950, com a publicação da 1ª declaração da UNESCO sobre raça (Maio, 1999, p. 146) e reiterado por vários trabalhos (e.g. Templeton, 1999) – tem sua importância reconhecida por Mireille Kamariza e co-autores.
A exemplo do signo “raça” e seus significados historicamente atribuídos, o signo “etnia” também não apresentaria, segundo os autores, a estabilidade semântica necessária para evitar conotações estereotipadas e perigosas aos enunciados científicos que o contém.
A partir do conjunto de preocupações explicitadas, os autores do artigo produzem recomendações que procuram, pela substituição de termos em uso, tornar menos perigoso o discurso. A mais relevante, para eles, é eliminar o uso do termo “trans-étnico”. Para isso, são sugeridas substituições que ajudam a produzir enunciados menos ambíguos: o uso de “ancestralidade” ao se referir à relação entre indivíduos que pertencem à mesma linhagem; “populações diferentes”, em lugar de “etnias diferentes” para caracterizar a origem de dados coletados a partir de grupos de indivíduos em diferentes localidades geográficas. O prefixo “trans” poderia ser substituído, ainda segundo os autores, pelo prefixo do idioma inglês “cross” (cruzado) ou “multi”.
Termos associados ao campo semântico derivado de etnia, como “etnicidade” ou “grupos étnicos”, considerados no artigo como termos sociais, têm a sua extração caracterizada como social, provavelmente, para marcar contraposição a científico. Segundo os autores, esses termos poderiam ser mobilizados mais adequadamente naquelas situações que envolvem autodeterminação, com essa circunstância tornada explícita.
A elaboração de um vocabulário específico para ser compartilhado por áreas diferentes, como a genética e a sociologia, com suas especificidades de muitas ordens, é uma tarefa de alto grau de complexidade, como reconhecido pelos autores do artigo. Afinal, os usos discursivos de termos específicos são consagrados no interior de cada disciplina, como é de tradição nas ciências.
O discurso disciplinar característico é um marcador que evidencia a maturidade e independência epistêmica de um campo de produção intelectual. O estabelecimento de uma tradição discursiva própria é condição necessária que delimita uma comunidade intelectual. Um campo epistêmico compartilhado, no interior do qual são possíveis a discussão e a transmissão de conhecimento entre seus participantes, demanda, entre outros fatores, a consolidação de uma linguagem comum (Smocovitis, 1996, p. xvii).
A construção de consensos em torno do emprego de certos signos, portanto, se não é uma empresa simples, é necessária. Basta ter em mente que a validade do signo “raça” como categoria de análise, a despeito da sua história de circulação e uso na primeira metade do século XX, é alvo de debate no âmbito das Ciências Sociais (veja, por exemplo, Guimarães, 2009, pp. 23-31). Assim, mesmo a força coercitiva de natureza institucional (cuja mobilização é sugerida no artigo aqui analisado), que pode ser exercida por sociedades, editores, revistas e agências de fomento, ou a contribuição de comunidades sub representadas para a discussão, pode não ser eficiente para produzir o efeito esperado pelos autores: “to shape the language that scientists use and push to achieve the highest standards here” (de moldar a linguagem que os cientistas usam e pressionar para alcançar os mais altos padrões) (Kamariza et al., 2021, p. 1521).
Afinal, mesmo posicionado, no gradiente proposto por Foucault, em algum ponto entre a alegoria do poeta e o caos do louco, o discurso científico ainda se constitui pela mobilização de palavras e a disputa pela definição de seus significados. Drummond nos ensina que cada uma delas tem “mil faces secretas sob a face neutra” (Andrade, 1945, p. 11). Uma tarefa da ciência, no interior da sua construção discursiva, é tentar reduzir, tanto quanto possível, essa multitude poliédrica.
No entanto, o deslizamento de significados, comuns na história dos signos, torna inexoravelmente precária – embora importante, necessária – essa tentativa. Nesse aspecto, a procura dos “mais altos padrões” ambicionada pelos autores do artigo nos parece algo movediça. A pergunta que motiva o artigo é semelhante àquela feita pela “Palavra”, na alegoria construída por Drummond em Procura da Poesia: “Trouxeste a chave?”. A expectativa dos autores do artigo em tela – uma resposta de natureza objetiva a essa pergunta – é provavelmente condenada à frustração, como já sugeria, na figuração Drummondiana, a expectativa desinteressada da própria Palavra à resposta.
Referências
ANDRADE, Carlos D. A Rosa do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1945.
BOWLER, Peter J. The Eclipse of Darwinism: anti-Darwinian evolutionary theories in the decades around 1900. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1983.
ERIKSEN, Thomas H. Ethnicity and Nationalism: Anthropological perspectives. New York: Plutopress, 2010.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
GUIMARÃES, Antonio. S. F. Racismo e Antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2009
KAMARIZA, Mireille; CRAWFORD Lorin; JONES, David; FINUCANE, Hilary. Misuse of the term ‘trans-ethnic’ in genomics research. Nature Genetics, 53: 1520-1521, 2021.
MAIO, Marcos. C. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (42): 141-158, 1999.
PARRA, Flavia C.; AMADO, Roberto C.; LAMBERTUCCI, José R.; ROCHA, Jorge; ANTUNES, Carlos M.; PENA, Sérgio D. J. Color and genomic ancestry in Brazilians. Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 100: 177-182, 2003.
PENA, Sergio D. J. Retrato molecular do Brasil, versão 2001. In PENA, Sergio D. J. (ed.) Homo brasilis: Aspectos genéticos, linguísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. São Paulo: Editora Funpec, 2001.
PIMENTA, Juliana R.; ZUCCHERATO Luciana W.; DEBES, Adriana A.; MASELLI, Luciana; SOARES, Rosângela P.; MOURA-NETO, Rodrigo S.; ROCHA, José; BYDLOWSKY, Sergio P.; PENA, Sérgio D. J. Color and genomic ancestry in Brazilians: a study with forensic microsatellites. Human Heredity, 62: 190-195, 2006.
PROVINE, William. B. Geneticists and the Biology of Race Crossing. Science, 182 (4144): 790-796, 1973.
SANTOS, Ricardo V.; FRY, Peter; MONTEIRO, S.; MAIO, Marcos C.; RODRIGUES, José C.; BASTOS-RODRIGUES, Luciana; PENA, Sérgio D. J. Color, race and genomic ancestry in Brazil: dialogues between anthropology and genetics. Current Anthropology. 50 (6): 787-819, 2009.
SAUSSURE, Ferdinand de Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
SMOCOVITIS, Vassily. B. Unifying Biology: The evolutionary synthesis and evolutionary biology. New Jersey: Princeton University Press, 1996.
TEMPLETON, Alan R. Human races: A genetic and evolutionary perspective. American Anthropologist, 100: 632-650, 1999.
TURDA, Marius & Maria. S. QUINE. Historicizing race. London: Bloomsbury Academic, 2018.
Citação bibliográfica deste artigo:
LIMA, Bruno Fancio; PAVANI, Marcelo Monetti. Trouxeste a chave? Boletim de História e Filosofia da Biologia, 16 (1), mar. 2022. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]