ISSN 1982-1026
Boletim de História e Filosofia da Biologia
Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)
Tradução de artigo publicado da área
“Contribuição da Filosofia à questão da imunidade“
Thomas Pradeu
Université Paris-Sorbonne Paris IV, UFR de Philosophie-sociologie, Institut d’histoire et de philosophie des sciences et des techniques, UMR8590, CNRS, Université Paris I Panthéon-Sorbonne, ENS, 75005 Paris, France
Correspondance:
Thomas Pradeu, Université Paris-Sorbonne, Philosophie, 1, rue Victor-Cousin,
75005 Paris, France.
Thomas.Pradeu@paris-sorbonne.fr
Tradução de:
Iago Pereira da Silva
Walter Valdevino Oliveira Silva
Referência do artigo original:
PRADEU, Thomas. L’apport de la philosophie à la question de l’immunogénicité. La Presse Médicale 3 9(7-8): 747-752, 2010. Doi: 10.1016/j.lpm.2010.03.012
Um papel para a Filosofia na Imunologia?
Em que a Filosofia poderia contribuir com a Imunologia? A Filosofia, que é a análise de conceitos e raciocínio, pode ser associada a uma disciplina tão experimental como a Imunologia?
Comecemos dizendo algo mais geral sobre a “Filosofia da Biologia”. A Filosofia da Biologia é um campo bem estruturado em escala internacional, com os seus próprios tópicos, sociedades eruditas e periódicos.(1) A Filosofia da Biologia é a análise dos fundamentos conceptuais, teóricos e metodológicos das ciências da vida contemporâneas. A “Filosofia da Imunologia” é, portanto, a análise dos fundamentos conceptuais, teóricos e metodológicos da Imunologia contemporânea. A Filosofia da Imunologia é, atualmente, um campo pequeno. Seus dois principais representantes são Alfred Tauber, médico e filósofo, professor na Universidade de Boston(2), e Anne-Marie Moulin, também médica e filósofa, diretora de pesquisa no Inserm(3). A Filosofia da Imunologia está gradualmente a espalhar-se, interessando cada vez mais a filósofos e cientistas, assim como a médicos(4). Neste artigo, tento mostrar que Filosofia pode contribuir para a Imunologia contemporânea, especialmente no exame da questão da imunogenicidade, que vou agora definir.(5)
A questão da imunogenicidade
Um dos principais desafios da Imunologia é determinar em quais condições uma entidade desencadeia uma resposta de rejeição de parte do sistema imunológico. Ou seja, ele tenta determinar o que é imunologicamente aceito, e o que é, ao contrário, imunologicamente rejeitado. Responder a essas questões é definir um critério de imunogenicidade.(6) Ao formular um critério de imunogenicidade, o imunologista coloca-se em posição de explicar e prever, tanto quanto possível, o desencadeamento de uma resposta imune. Embora possa parecer tentador abandonar o objetivo de buscar um critério de imunogenicidade com o pretexto de que seria muito difícil alcançá-lo, é necessário entender que, se a Imunologia rejeitar esse objetivo, ela não poderá mais fornecer explicações e teorias sobre o funcionamento do sistema imunológico, mas somente descrições de seus mecanismos de funcionamento. Uma parte significativa das atividades dos imunologistas contemporâneos consiste, de fato, na descrição de novos receptores ou de novas moléculas, sem integrar essas descrições em um quadro teórico. No entanto, uma das teses que desejo defender aqui é que, para permanecer uma disciplina biológica exigente e fecunda, a Imunologia deve manter o seu objetivo de responder à questão da imunogenicidade.
Diversos critérios de imunogenicidade foram propostos durante o século XX, especialmente o de “não-self” (em oposição ao “self”), e o de “perigo” (em oposição a “benigno”). Ao detalharmos as formas como a Filosofia pode ser útil à Imunologia, teremos a oportunidade de questionar o significado desses dois critérios e a sua relevância. Chegou, agora, o momento de tentar responder à pergunta que motiva este artigo: de que forma pode a Filosofia lançar luz, embora modestamente, sobre a questão da imunogenicidade? Parece-me que a contribuição da Filosofia para essa questão é de três tipos: a análise e os esclarecimento dos conceitos da Imunologia contemporânea, a elucidação da história de certos conceitos imunológicos herdados da Filosofia e, finalmente, a proposta de teorias e articulações entre teorias. Vamos agora detalhar esses três aspectos.
Análise e esclarecimento dos conceitos da Imunologia contemporânea
A Filosofia como clarificação de conceitos
A Filosofia é, sobretudo, um trabalho sobre os conceitos e, mais precisamente, um trabalho de esclarecimento conceitual. Uma tal concepção de Filosofia pode fazer sorrir os médicos e os cientistas, já que sabemos a que ponto os termos empregados pelos filósofos podem ser, às vezes, obscuros. Portanto, junto de uma Filosofia que cultiva certa obscuridade em seus termos e teses, existe uma tradição filosófica que, embora por vezes técnica, tem por objetivo principal trazer maior clareza possível aos conceitos e às proposições. Essa segunda tradição encontrou um terreno de aplicação privilegiado nas ciências, que frequentemente precisam de uma ajuda para chegar à elaboração de um vocabulário claro e preciso.
A necessidade de esclarecer conceitos imunológicos
Este é o caso particular, atualmente, da Imunologia. Os imunologistas falam do “self”, de “não-self”, de “tolerância”, de “perigo”, de “sistema”, de “função”, de “homeostase”, ou, ainda, de “auto-organização”, sem, na maioria dos casos, fornecer uma definição precisa desses termos. Os imunologistas fazem muito uso de metáforas, frequentemente bélicas (o sistema imunológico como sistema de “defesa”, os leucócitos como “soldados de infantaria”, as células como “assassinas ou caçadoras naturais”, as “defesas”…) ou sociais (a “tolerância”, a “comunicação” intercelular, a “cooperação”, “a ajuda” dada, por exemplo, pelos linfócitos T auxiliares). Esses termos e metáforas podem ser úteis se o que sugerem forem maneiras de conceber o funcionamento do sistema imunológico, mas, se não são definidos com precisão, podem também dar a ilusão de que nos dão uma explicação sendo que, na verdade, apenas propomos um ponto de vista possivelmente discutível.(2, 7)
Um exemplo de conceito a ser esclarecido: a tolerância imunológica
Tomemos o exemplo do conceito de “tolerância”. Ele comporta diversos significados diferentes. Os imunologistas o usam frequentemente, porém, sem dizer sempre a qual significado precisamente o termo se refere no contexto no qual é utilizado. A expressão “tolerância imunológica” pode ter, pelo menos, quatro sentidos, que encontramos na literatura imunológica:
- A falta de rejeição imune, para o organismo, de seus próprios constituintes – isso quer dizer que, desde Burnet, ainda a chamamos de “tolerância ao self” (Burnet 1969);
- “A ignorância imunológica”, isto é, a ausência de interações entre o sistema imunológico e as entidades envolvidas (seria o caso, por exemplo, dos orgãos chamados de “imunoprivilegiados”);
- A imunorregulação, ou seja, o desencadeamento de mecanismos que diminuem a atividade de certos efeitos imunológicos (em particular, a atividade lítica ou inflamatória);
- A ausência de rejeição de um transplante sem tratamento imunossupressor.
Esses sentidos são diferentes, e cada utilização em um artigo científico deve ser explicada. Por exemplo, é muito significativo que, desde os anos 1990, os imunologistas tenham usado cada vez mais o termo “tolerância” para se referir não à ausência de uma resposta imune ao “self”, mas à ausência de uma resposta imune a certas entidades “estrangeiras”, tais como bactérias comensais ou simbióticas (localizadas, principalmente, mas não exclusivamente, no intestino). Essa mudança de significado não é inocente, uma vez que o segundo significado aponta para a ideia de que a teoria do self e do não-self precisa de ser revista ou, no mínimo, alterada.
Portanto, deveríamos dizer que bilhões de bactérias que vivem no nosso intestino são “toleradas”, e, se sim, em qual sentido? Essa questão tornou-se fascinante desde que imunologistas e microbiologistas têm tentado definir claramente o que querem dizer com ela, ao ponto que, agora, podemos opor aqueles que consideram que se trata de um caso de ignorância imunológica (por exemplo(8)) àqueles que pensam que deveria ser chamada de imunorregulação.(9,10) Como se pode ver nesse exemplo, o esclarecimento conceptual que o filósofo pede não pretende brincar com as palavras, nem sequer reflete um desejo de ser excessivamente exigente; pelo contrário, a ideia é que um esclarecimento conceptual tem consequências científicas imediatas, uma vez que, no nosso exemplo, podemos esperar decidir, no futuro, com a ajuda de observações e experiências, entre a tese da ignorância imunológica e a da imunorregulação.
Os imunologistas precisam desse trabalho de esclarecimento conceptual. Nos dias de hoje, eles se deram conta disso, como ilustrado pelo grande número de artigos de revisão dedicados à definição de conceitos cruciais em Imunologia. Os filósofos podem, sem dúvida, ajudar os imunologistas nessa tarefa de esclarecimento conceitual. De fato, parece, hoje em dia, que os imunologistas precisam ainda mais desse esclarecimento conceitual, porque estamos em um momento de indeterminação teórica em Imunologia.
Uma história filosófica dos conceitos imunológicos
A Imunologia contemporânea se interroga bastante sobre seus fundamentos teóricos. Uma questão importante é a de saber se a teoria do self e do não-self, que domina a Imunologia há mais de 50 anos, é ou não satisfatória.(11) Diante dessas perguntas, a Filosofia pode trazer uma primeira contribuição, que consiste em ajudar os imunologistas a voltarem-se aos conceitos que utilizam, produzindo uma história filosófica desses conceitos.
As origens do “self”
Voltemo-nos para o termo “self”, que é central em Imunologia pelo menos desde os anos 1950. Esse termo continua, ainda hoje, a estruturar o pensamento dos imunologistas, que o utilizam, com muita frequência, nas suas produções científicas.(12) De onde vem esse termo em Imunologia? Desde o fim do século XIX, e início do século XX, Metchnikoff (1845-1916) e Paul Ehrlich (1854-1915) colocaram a questão da identidade dos organismos no centro da Imunologia. De acordo com a tese do horror autotoxicus, proposta por Ehrlich, é impossível que um organismo desenvolva uma resposta imune contra seus próprios constituintes – ou melhor, deve haver mecanismos que impeçam que tal autorreatividade seja destrutiva. O virologista australiano Frank Macfarlane Burnet (1899-1985) retomou as reflexões dos seus antecessores sobre a identidade do organismo e deu-lhes uma forma muito mais sofisticada. No final dos anos 30 e início dos anos 40, Burnet propôs os termos “self” e “não-self”.(2) Ele originou a teoria do self e do não-self, segundo a qual o organismo não desencadeia uma resposta imune contra os seus próprios constituintes (o “self”), mas desencadeia uma resposta imune contra qualquer entidade estrangeira (o “não-self”). Na sua autobiografia, Burnet diz ter tomado emprestado o termo “self” de The Science of Life, publicado por H. G. Wells, J. S. Huxley e G. P. Wells, em 1929. Esses autores utilizam o termo em um sentido psicológico e propõem uma analogia com a identidade do organismo – uma analogia que Burnet aprofundou utilizando dados da Imunologia. Além disso, o termo “self” vem da Filosofia, como ilustrado pelo fato de a primeira ocorrência do termo inglês “self” se encontrar no filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704), no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690). Ele refere-se, nesse contexto, à ideia da identidade ao longo do tempo de um sujeito capaz de pensamento e memória.
O que podemos aprender com esse trabalho histórico?
Que consequências tirar de uma história do termo “self”? Ao recorrer a esse termo, Burnet transforma explicitamente uma noção psicológica (o “self” do sujeito pensante) em uma noção orgânica (o “self” compreendido como a identidade de um organismo através do tempo, ou seja, o que faz a unidade de um organismo através do tempo, apesar das mudanças que ele sofre). No entanto, podemos notar que essa transformação representa um risco duplo para o “self” imunológico. Em primeiro lugar, o da ilusão do “mental”, que frequentemente leva os imunologistas a adotar uma linguagem antropomórfica quando falam do sistema imunológico: temos certeza de que realmente medimos as possíveis consequências do que propusemos quando dizemos que o sistema imunológico “percebe” um antígeno, “aprende” a “reconhecê-lo”, “tolera-o” ou mesmo o identifica como “perigoso”? Em segundo lugar, Burnet manteve uma certa interpretação da noção filosófica e psicológica do “self”, ou seja, uma noção fortemente “substancialista”, que consiste em compreender o “self” como a manutenção através do tempo de uma identidade autoconstruída, daí a ideia de que o “self” deve defender constantemente a sua integridade contra entidades estrangeiras.(13) De fato, Burnet passa gradualmente de uma concepção “ecológica” do self para uma concepção ancorada na genética, insistindo na ideia de isolamento em relação ao ambiente.(5)
Portanto, oferecer uma história filosófica dos conceitos centrais usados pela Imunologia pode ajudar a entender melhor esses conceitos, bem como os subentendidos ou implicações que eles podem transmitir, e que podem ter uma influência muito real e concreta no trabalho diário dos imunologistas. Também podemos, por exemplo, tentar partir de uma interpretação alternativa de certos conceitos filosóficos para sugerir que a sua adoção pelos imunologistas contemporâneos poderia levar a mudanças teóricas profundas na disciplina.(13)
A Filosofia, portanto, não pode contentar-se em oferecer uma espécie de visão abrangente da Imunologia. Ela deve dar lugar a um diálogo entre filósofos e imunologistas e, se possível, influenciar a forma como os próprios imunologistas concebem a sua disciplina. Esse diálogo poderia levar ao desenvolvimento de novas teorias para a Imunologia, como estamos, nesse momento, a demonstrar.
Uma atividade de proposição teórica e de articulação entre teorias
A Filosofia não é apenas uma atividade de análise e crítica, ela deve também ser uma atividade propositiva. Em particular, a Filosofia pode, sem dúvida, contribuir para sugerir novas teorias para a Imunologia. Em constante diálogo com os imunologistas, proponho, desde 2004, uma teoria imunológica que compete com a teoria do “self” e do “não-self”, a que tenho chamado “teoria da continuidade”.
A teoria da continuidade, uma teoria concorrente à teoria do self e do não-self
O ponto de partida dessa sugestão é uma crítica à teoria do “self” e do “não-self”. Por um lado, os dados recolhidos nos últimos vinte anos mostraram que a autoimunidade normal é um fenômeno comum e necessário: auto-reatividade parcial dos linfócitos nos órgãos linfóides centrais e, por outro lado, nos periféricos, fagocitose de constituintes endógenos mortos, resposta das células T reguladoras às células efetoras ou células imunológicas que são as células do “self”. Esses fenômenos de desencadeamento de uma resposta imune contra constituintes endógenos (isto é, do próprio organismo) mostram que existe uma autoimunidade normal, não patológica, isto é, distinta do que chamamos de doenças autoimunes (pense no lúpus, diabetes tipo I etc.). Podemos deduzir, do que foi dito, que é incorreto que o organismo não desencadeie uma resposta imune contra os seus próprios constituintes. Por outro lado, trabalhos recentes sobre “quimerismo” (a presença, em um organismo, de células de outro organismo, portadoras de outro genoma), a “tolerância fetomaternal” e, mais importante ainda, sobre a presença massiva de bactérias comensais e simbióticas dentro de organismos multicelulares mostraram que é incorreto que o organismo desencadeie uma resposta imune de rejeição contra qualquer entidade estrangeira. Um mamífero, por exemplo, é constituído por dez vezes mais células bacterianas do que células portadoras do seu “próprio” genoma. Essas bactérias comensais e simbióticas são cruciais para a digestão, a imunidade e o desenvolvimento do hospedeiro,(9, 14) e são cada vez mais vistas não como um conjunto de entidades “coexistentes” com o organismo, mas como um verdadeiro “órgão” desse organismo.(15, 5)
O objetivo da teoria da continuidade é propor um critério diferente para a imunogenicidade do que o proposto pela teoria do self e do não-self. De acordo com a teoria da continuidade, o que desencadeia uma resposta imune não é o “estrangeiro”, mas qualquer descontinuidade antigênica forte, ou seja, qualquer modificação significativa nos padrões moleculares com os quais os receptores imunológicos interagem. Essa descontinuidade antigênica deve ser entendida com base em cinco fatores: a quantidade de antígeno, a sua taxa de aparecimento, o grau de diferença molecular, a regularidade da apresentação do antígeno e o locus da interação imunológica.(5) Essa teoria permite explicar, por exemplo, a resposta imune a tumores cancerígenos (que são geneticamente “self”, mas que, na maioria dos casos, desencadeiam respostas imunes) ou a ausência de destruição de bactérias simbióticas residentes.
De certa forma, a teoria da continuidade retoma uma afirmação fundamental da teoria do self e do não-self, que é a de que a resposta imune se deve a uma forte diferença molecular. No entanto, a teoria da continuidade concentra-se na própria diferença molecular, sem a interpretar a priori (tal como a teoria do self) em termos do casal endógeno/exógeno, afirmando que só o que vem do “exterior” (“o estrangeiro”) desencadeia uma resposta imune eficaz. Enfatizamos que a teoria da continuidade sugere uma reorientação parcial de conceitos e hipóteses da Imunologia, e pode dar lugar a previsões testáveis. A partir dos anos 90, outra teoria que competia com a teoria do self e do não-self foi proposta por Polly Matzinger e alguns dos seus colegas. Chama-se “Teoria do Perigo” e baseia-se na afirmação de que o sistema imunológico não responde ao “não-self” (o estrangeiro) mas a “sinais de perigo”.(16) A teoria da continuidade tem alguns pontos de convergência com a teoria do perigo: a insatisfação com a teoria do self e do não-self, a necessidade de propor um critério de imunogenicidade, a insistência em certos processos de tolerância imunológica. No entanto, a teoria da continuidade diverge da teoria do perigo em vários aspectos fundamentais, alargando consideravelmente a perspectiva da tolerância imunológica, insistindo no papel intrínseco da imunidade inata e, sobretudo, tentando propor um critério de imunogenicidade que não é nem antropomórfico nem tautológico – dois riscos que, sem dúvida, ameaçam a teoria do perigo.(5)
Os filósofos podem, portanto, tentar ajudar os imunologistas propondo novas hipóteses ou teorias. É indiscutível que, em último recurso, são os cientistas que devem decidir produzindo os dados experimentais que permitam que essas sugestões sejam invalidadas ou corroboradas. No entanto, isso não pode impedir que os filósofos que investem no conhecimento científico sejam uma fonte de propostas.
Articulando diferentes teorias
A Filosofia também pode ser útil na construção de “pontes” entre diferentes teorias científicas. Por exemplo, entre as teorias imunológicas existentes e a teoria da evolução por seleção natural. Esta última está, em certa medida, muito presente na Imunologia, principalmente através da teoria da seleção clonal(17), mas permanece frequentemente desconhecida para os imunologistas, cujo trabalho é típico daquilo que o grande biólogo evolucionista Ernst Mayr chamou de a Biologia do “como?”, em oposição à Biologia do “por que”? (que é a Biologia da evolução).(18) Portanto, a articulação entre Imunologia e evolução é mais necessária do que nunca, em pelo menos três níveis.(19) Em primeiro lugar, ela permite destacar a importância da imunidade “inata” (isto é, caracterizada pela ausência de “memória” imunológica), tanto em organismos nos quais só ela está presente, como em organismos que também possuem imunidade adaptativa. Essa perspectiva conduziu a uma verdadeira revolução na compreensão da filogenia da imunidade.(20, 21) Em segundo lugar, ela levou a recolocarmos no centro da Imunologia a questão sobre as interações entre hospedeiros e microrganismos, dando lugar à aplicação, no sistema imunológico, de conceitos e modelos ecológicos.(22) Por último, verificou-se que o sistema imunológico desempenha um papel indiscutivelmente fundamental em um dos problemas mais debatidos atualmente na biologia evolutiva, o dos “níveis de individualidade” e das “transições evolutivas”: em um organismo multicelular, os mecanismos imunológicos impedem a replicação de entidades evolutivas de nível inferior (especificamente, linhagens celulares), replicação essa que se faz em detrimento do organismo como um todo.(23, 24)
Conclusão
Assim, a Filosofia pode contribuir para esclarecer o problema científico da imunogenicidade procedendo a esclarecimentos conceituais, ajudando os imunologistas a voltar à história dos termos que utilizam diariamente, e propondo novas teorias ou novas articulações entre diferentes teorias biológicas. Esperemos que um grande número de imunologistas, pelo menos inicialmente os mais preocupados com a reflexão e a precisão conceptual, aceitem essa mão estendida e respondam ao convite dos filósofos para se empenharem em uma longa colaboração.
Referências:
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(4) Séminaire Philosophie et immunologie, qui se tient mensuellement à l’Institut d’histoire et de philosophie des sciences et des techniques (UMR8590 CNRS, université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, ENS): http://wwwihpst.univ-paris1.fr/s/24,philosophie_et_immunologie.html.
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Citação bibliográfica deste artigo:
PRADEU, Thomas. Contribuição da Filosofia à questão da imunidade. Trad. Iago P. Silva, Walter V. O. Silva. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 16 (4), dez. 2022. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org/boletins/boletim-hfb-volume-16-numero-4-dezembro-de-2022-2/traducao-contribuicao-da-filosofia-a-questao-da-imunidade-thomas-pradeu/. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]