ISSN 1982-1026

Boletim de História e Filosofia da Biologia

Publicado pela Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)

 Tradução de artigo publicado da área

 

“A base evolutiva da ética religiosa”

John Teehan

John Teehan é Professor Associado de Filosofia na Hofstra University, 104A Roosevelt Hall, Hempstead, NY 11549

Correspondência:

Hofstra University, 104A Roosevelt Hall, Hempstead, NY 11549
SUSJPT@Hofstra.edu  

Tradução de:

Iago Pereira da Silva

Maíra Bittencourt

Maria Irene Baggio

Miécio Ribeiro Moreira Júnior

Walter Valdevino Oliveira Silva

Referência do artigo original:

TEEHAN, John. (2006), The Evolutionary Basis of Religious Ethics. Zygon®, 41: 747-774. https://doi.org/10.1111/j.1467-9744.2005.00772.x

Resumo

Proponho que as tradições éticas religiosas possam ser entendidas como expressões culturais de processos evolutivos subjacentes. Começo com uma discussão sobre as teorias evolutivas da moralidade, especificamente a seleção de parentesco e o altruísmo recíproco, e, então, discuto alguns trabalhos recentes sobre a evolução da religião, expondo aquelas características da religião que a preparam para assumir uma função moral na sociedade. Tendo estabelecido o quadro teórico para essa tese, volto-me para uma leitura atenta dos primeiros ensinamentos éticos judaicos e cristãos, encontrados na Bíblia, a fim de estabelecer um suporte preliminar para a proposta. Meu objetivo é defender a plausibilidade da tese e i’ndicar como ela, se estiver correta, fornece um novo insigth sobre as tradições morais judaico-cristãs e sobre o fenômeno da violência religiosa. Tal abordagem sobre a ética religiosa tem implicações metaéticas importantes. Na última seção, considerarei questões tais como a fundamentação da ética e as possibilidades e limitações da ética secular. 

 

Palavras-chave: ética cristã; sinais custosos; ética evolutiva; judaísmo; seleção de parentesco; altruísmo recíproco; violência religiosa.

 

       “Se Deus não existe, então tudo seria permitido”. Assim, Dostoiévski expressou o que é, para muitos, a simples relação entre moralidade e religião – necessidade da religião como fundamento da moralidade. Embora um trabalho significativo tenha sido feito para estabelecer a autonomia da ética, essa posição continua a ter um apelo intuitivo para o grande público e para mais do que alguns acadêmicos profissionais. A moralidade, por assim dizer, deve basear-se em algo atemporal, imutável, transcendente; caso contrário, nada nos resta senão nossas paixões e caprichos subjetivos para nos guiar pelas complexidades morais de nossas vidas. Essa visão é característica de muitas abordagens filosóficas da ética, assim como das teológicas.
          Em contraste com tais abordagens filosóficas e teológicas, está a tradição das teorias éticas empíricas. Tais teorias tentam basear julgamentos morais em fenômenos naturais e concretos tais como prazer, felicidade ou desejos.
         Uma das abordagens empíricas mais recentes e ainda mais controversa é a que podemos chamar de ética evolutiva, um termo muito amplo e vago para os propósitos atuais, abrangendo não apenas uma ampla gama de teorias, mas também uma variedade de abordagens muitas vezes incompatíveis com as questões de moralidade.(1) Estou preocupado, aqui, com as tentativas de entender os fenômenos morais – as emoções (como amor e ódio, raiva e ciúme, simpatia e animosidade, culpa e vergonha) que subjazem aos nossos dilemas morais e às estratégias cognitivas (que levam a nossos julgamentos sobre o certo e o errado, o bem e o mal) como produtos de nosso desenvolvimento evolutivo. Tal abordagem da ética se opõe diretamente às abordagens transcendentes: é uma explicação de baixo para cima e não de cima para baixo, por assim dizer. Nos termos de Daniel Dennett, tal abordagem vê a moralidade como sendo criada por guindastes terrenos, e não por ganchos celestiais [skyhooks] (1995, 73-80). Isso explica, acredito, muito do desconforto popular com os estudos evolutivos sobre a humanidade. O medo parece ser que, se pudermos explicar nossas vidas morais como resultantes de processos estritamente naturais, uma base transcendente seja rejeitada e a moralidade seja semelhante a uma ilusão.
          Isso posto, é possível que a tese desenvolvida neste ensaio seja vista por alguns como controversa. Pretendo explorar não apenas a proposição de que a moralidade está fundamentada em processos naturais, mas também a de que a própria ética religiosa pode ser entendida como expressões de uma lógica evolutiva subjacente. Isso inverte a posição transcendente – de que a moralidade está fundamentada na religião – e sugere, em vez disso, que a ética religiosa está fundamentada em uma lógica moral que está ela mesma fundamentada na natureza. Então, em vez de haver uma oposição entre ética religiosa e ética evolutiva, a ética religiosa torna-se um subconjunto da ética evolutiva.
           Começo com uma rápida visão geral das teorias sobre a evolução da moralidade e a evolução da religião de modo a fazer a ligação conceitual que conecta a religião à moral. Em seguida, considero como esse vínculo evolutivo moldou a ética religiosa. Na seção de conclusão, considero algumas implicações dessa tese.

A evolução da moralidade

            De uma perspectiva evolutiva, a moralidade é um meio para resolver o conflito social e, assim, tornar possível a vida social e a ação cooperativa. Isso é essencial para os humanos. Somos seres sociais, descendentes de uma longa linhagem de seres sociais. A vida em grupo permitiu que nossos ancestrais enfrentassem melhor os rigores, perigos e desafios da existência diária. Os benefícios do comportamento cooperativo na caça, na coleta e na defesa contra predadores são óbvios, mas havia, é claro, custos. A cooperação exige que um indivíduo compartilhe os perigos e os custos necessários para promover o bem do grupo. Para a perspectiva evolutiva, isso levanta um problema. Normalmente, os indivíduos que promovem com mais sucesso seus próprios interesses terão uma vantagem na luta pela sobrevivência. Sacrificar meu interesse pelo bem do grupo não parece fazer sentido na perspectiva evolutiva. Esse é o problema do altruísmo. Nos estudos evolutivos, o altruísmo foi definido como “comportamento que beneficia outro organismo (…) enquanto é aparentemente prejudicial ao organismo que realiza o comportamento”, com benefícios e custos determinados pelos efeitos sobre a aptidão reprodutiva de um indivíduo (Trivers, 1971, 35). O problema é entender como o comportamento que diminui a aptidão de um agente para aumentar a aptidão de outro pode surgir de um processo impulsionado pelos chamados genes egoístas (Dawkins, 1976).(2)
     O primeiro passo para resolver esse problema foi o desenvolvimento da teoria da seleção de parentesco, que foi rigorosamente estabelecida por William Hamilton em 1964. A teoria evolutiva sustenta que o comportamento que aumenta o sucesso reprodutivo (ou seja, a aptidão) será selecionado e transmitido. O sucesso reprodutivo é medido estritamente pelo número de genes passados de uma geração para a seguinte. Sacrificar-se pelos filhos faz sentido, então, porque se está protegendo seu investimento genético. As pessoas que não cuidam de seus filhos não terão muitos descendentes. Esse tipo de auto-sacrifício é realmente um interesse próprio de longo prazo e não representa nenhum problema para a evolução.
       Hamilton percebeu, no entanto, que ter filhos não é a única maneira de obter cópias dos genes de um indivíduo para a próxima geração. Ele escreve:

Um gene que faz com que seu possuidor forneça cuidado parental deixará mais genes de réplica na próxima geração do que um alelo com tendência oposta. A vantagem seletiva pode ser vista por meio de benefícios conferidos indiferentemente a um conjunto de parentes, cada um dos quais tem 50% de chance de carregar o gene em questão. Deste ponto de vista, também se vê, porém, que não há nada de especial na relação pais-filhos. (…) O relacionamento de irmãos é igualmente próximo. Se um indivíduo carrega um certo gene, a expectativa de que um irmão aleatório carregue uma réplica dele é, novamente, a metade. Da mesma forma, o relacionamento de meio-irmão é equivalente ao de avós e netos com a expectativa de genes replicados, ou genes “idênticos por descendência”, como são geralmente chamados, com probabilidade de 25%; e assim por diante. (Hamilton, 1964, 1-2) 

          Meu filho carrega cópias de 50% dos meus genes, mas meus irmãos também carregam cópias de 50% dos meus genes, e seus filhos, meus sobrinhos e sobrinhas, carregam cópias de 25% dos meus genes e assim por diante através dos vários graus de relacionamento familiar. Sacrificar meus interesses imediatos por meus parentes também pode ser visto como consistente com o interesse próprio de longo prazo. Essa concepção mais ampla de interesse próprio genético é denominada por Hamilton de “aptidão inclusiva”. Embora isso possa não coincidir com as noções filosóficas de altruísmo, cria a possibilidade de, pelo menos, um comportamento de auto-sacrifício limitado, de uma forma consistente com os processos evolutivos.
      A teoria da seleção de parentesco de Hamilton é um modelo para explicar a evolução da moralidade, mas ela não é suficiente. Por mais poderosa que seja a seleção de parentesco, ela é restrita a grupos relativamente pequenos nos quais a probabilidade de parentesco é alta. Esse modelo explica por que faz sentido sacrificar-se por um parente, mas não por que eu deveria me sacrificar por alguém geneticamente não relacionado. Para que as sociedades continuem a desenvolver-se para além das unidades familiares estendidas, é necessário outro mecanismo. Em 1971, Robert Trivers forneceu um modelo para isso com sua teoria da evolução do altruísmo recíproco. De maneira simplista, essa é uma estratégia do tipo “eu te ajudo, para que você me ajude também”, ou, como disse Trivers, “o altruísmo recíproco também pode ser visto como uma simbiose, cada parceiro ajudando o outro enquanto ele se ajuda” (1971, 39). O comportamento cooperativo compensa. Meu sacrifício de tempo e esforço para ajudá-lo, agora, compensa quando você me ajudar mais tarde e, portanto, funciona como um investimento em minha aptidão a longo prazo. Diante dos desafios e da precariedade da existência humana durante nossa história evolutiva, uma estratégia que promovesse um sistema de assistência mútua teria uma grande vantagem seletiva.
          Trivers estabelece três condições necessárias para a evolução do altruísmo recíproco:

(1) Duração do tempo de vida. A longevidade dos indivíduos de uma espécie maximiza a chance de que quaisquer dois indivíduos encontrem muitas situações altruísticas (…) (2) Taxa de dispersão. A baixa taxa de dispersão durante todo ou uma parte significativa da vida dos indivíduos de uma espécie aumenta a chance de um indivíduo interagir repetidamente com o mesmo conjunto de vizinhos (…) (3) Grau de dependência mútua. Interdependência dos membros de uma espécie (…) tenderá a manter os indivíduos próximos uns dos outros e, assim, aumentar a chance de eles encontrarem situações altruísticas juntos. (1971, 37)

       Claramente, os humanos atendem a esses critérios (1971, 45). O altruísmo recíproco permite o desenvolvimento de relações estendidas de assistência e o desenvolvimento de sociedades mais complexas de uma forma consistente com os mecanismos da evolução darwiniana.
    Richard Alexander expandiu e enriqueceu essa abordagem evolutiva para a moralidade com a noção de reciprocidade indireta. A minha ajuda a você, agora, também pode me beneficiar, mesmo que você nunca retribua, criando a reputação de que eu seja um cooperador. Alexander escreve: “[e]u considero a reciprocidade indireta como uma consequência da reciprocidade direta que ocorre na presença de públicos interessados – grupos de indivíduos que continuamente avaliam os membros de sua sociedade como possíveis futuros membros com os quais poderiam interagir e de quem eles gostariam de ganhar mais do que perder (esse resultado, é claro, pode ser mútuo)” (1987, 93-94). Ele aponta três formas principais que essa reciprocidade pode assumir. A reputação de ser um cooperador pode encorajar outros a cooperar com tal indivíduo; um indivíduo altruísta pode ser recompensado, materialmente ou em termos de aumento de status, pela sociedade por suas contribuições; ou um altruísta pode melhorar sua aptidão e/ou de sua família aumentando a aptidão da comunidade (p. 94).
      Tais processos funcionam, é claro, apenas se as pessoas de fato retribuírem. Há, no entanto, uma grande tentação em não retribuir – enganar ou desistir – porque se você já se beneficiou da cooperação de alguém, qualquer reciprocidade de sua parte terá um custo desnecessário. Diante disso, a capacidade de discriminar entre cooperadores e trapaceiros é crucial, assim como o compromisso de punir aqueles que se recusam a retribuir. Se trapacear é custoso, isto é, “se trapacear tem efeitos adversos posteriores (…) que superam o benefício de não retribuir” (Trivers 1971, 36), há uma motivação para cooperar. Se uma sociedade deve funcionar em um nível além da família, ela deve desenvolver um sistema de incentivo à cooperação e de detecção e punição da trapaça. Uma solução é o desenvolvimento de um sistema moral (3) — um código de comportamento que aprova e recompensa certos comportamentos necessários ao funcionamento social coeso, enquanto condena e pune os comportamentos contrários a esse funcionamento social coeso. Como diz Alexandre,

Os sistemas morais são sistemas de reciprocidade indireta. Eles existem por causa de conflitos de interesse e surgem como resultado da complexidade das interações sociais em grupos de indivíduos com convivência duradoura e com (a) vários conflitos e confluências de interesse, (b) interações sociais repetidas indefinidamente e (c) múltiplos membros com os quais poderiam interagir. A função ou raison d’etre dos sistemas morais é evidentemente fornecer a unidade necessária para capacitar o grupo a competir com sucesso com outros grupos humanos. (1987, 142)

       Há um grande e crescente corpo de literatura apoiando essa teoria da evolução da moralidade e sugerindo, além disso, que ela pode ter desempenhado um papel decisivo na evolução da cognição humana.(4)
       A seleção de parentesco e o altruísmo recíproco (ambos diretos e indiretos) são os pilares gêmeos das abordagens evolutivas da moralidade. O altruísmo recíproco estende a influência da moralidade para além da ética de clã baseada na seleção de parentesco e, juntos, eles fornecem um meio eficaz de explicar uma ampla gama de fenômenos morais. O altruísmo recíproco, no entanto, também sofre do que chamo de problema da extensão. Um indivíduo tem uma forte motivação para retribuir para que ele não ganhe a reputação de ser um trapaceiro. Um trapaceiro será punido e não se beneficiará de futuros atos de cooperação. Essa motivação, no entanto, é mais poderosa em pequenas comunidades nas quais há uma alta probabilidade de que a trapaça seja detectada e lembrada. Em uma grande comunidade, há uma possibilidade maior de que a trapaça possa passar despercebida, então seu custo é reduzido. Além disso, quanto maior e mais complexa uma sociedade, mais indiretos são os custos e benefícios do altruísmo. Alguém pode contribuir para o fundo geral e nunca perceber quem está cooperando e quem está trapaceando. Isso também reduz o custo da trapaça e, consequentemente, aumenta o custo da cooperação. Os sistemas morais enfraquecem à medida que as sociedades se tornam maiores e mais anônimas. Matt Ridley exemplifica isso com um exemplo totalmente mundano e, portanto, eficaz, de etiqueta de trânsito. Ele ressalta que “ninguém sonharia em dirigir em seu subúrbio ou vilarejo de origem como dirigiria em Manhattan”, e é óbvio por que isso acontece: “[a]s grandes cidades são lugares anônimos. Você pode ser tão rude quanto quiser com estranhos em Nova York, Paris ou Londres e correr apenas um risco minúsculo de encontrar as mesmas pessoas novamente (especialmente se estiver de carro). O que o coíbe em seu subúrbio ou vilarejo é a aguda consciência da reciprocidade. Se você for rude com alguém, há uma boa chance de que eles também se sintam no direito de serem rudes com você” (1996, 70). Quanto maior a probabilidade de interações futuras, maior o custo potencial de trapacear; quanto maior a sociedade, menor a probabilidade de futuras interações com qualquer indivíduo em particular fora de seus círculos sociais e, portanto, maior a tentação de trapacear. As sociedades que estão em desenvolvimento precisam resolver esse problema de extensão. A religião é uma solução, mas antes de podermos explorar essa opção, precisamos considerar a evolução da religião.
           Mais uma observação precisa ser feita antes de prosseguirmos. Ao discutir a evolução da moralidade e uma lógica moral evolutiva, não estamos nos referindo a processos que são necessariamente motivos conscientes ou mesmo considerações conscientes. Estamos nos referindo a predisposições cognitivas/emocionais, às vezes chamadas de regras epigenéticas, que podem levar as pessoas a agir de maneiras altruísticas. Assim, por exemplo, pais que se sacrificam por seus filhos não estão necessariamente (nem mesmo poderiam estar) calculando o provável retorno da replicação genética sobre o investimento de tempo. Se perguntados, eles podem responder com sinceridade que a felicidade de seu filho faz todo o esforço valer a pena. Esse sentimento de orgulho e amor que motiva seu comportamento pode ser considerado a causa proximal desse comportamento. A teoria da seleção de parentesco fornece, nesse caso, uma explicação do desenvolvimento de tais respostas emocionais e, portanto, fala de uma causa distal (isto é, a evolução explica o desenvolvimento da resposta emocional; a resposta emocional explica o comportamento). É por isso que o caso de pais que investem em uma criança gravemente incapacitada, com baixa probabilidade de retorno genético desse investimento, não é um contraexemplo às explicações evolutivas da paternidade. O investimento parental motivado por um apego emocional a uma criança pode funcionar como a causa proximal de tal comportamento, mesmo quando tal comportamento não compensa em um sentido evolutivo. A evolução favorece comportamentos com maior probabilidade de melhorar a aptidão reprodutiva do que comportamentos concorrentes, o que ocasiona que, em certos casos, esse comportamento não aumentará a aptidão reprodutiva. É crucial manter essa lição em mente, pois ela ajuda a abordar vários contraexemplos propostos (como se sacrificar por um completo estranho, sem expectativa de reciprocidade) que, prima facie, parecem enfraquecer o argumento para uma explicação evolutiva.(5)

A evolução da religião

          Falar da evolução da religião é entrar em um campo minado, e não simplesmente por causa de sensibilidades religiosas. Um problema é a questão da definição. O que constitui uma religião? Como diferenciamos religião de magia ou superstição? Vou lidar com o problema, aqui, ignorando-o. Ao considerar a evolução da religião, estamos interessados em uma mentalidade que interpreta o mundo de maneiras que contribuem para o desenvolvimento de sistemas que hoje classificamos como religiosos. O outro problema significativo é que estamos engajados em um projeto de arqueologia intelectual. Estamos tentando descobrir as origens de fenômenos que não deixaram vestígios físicos. Certamente a mentalidade religiosa deve anteceder, para poder explicar, a criação de objetos e rituais religiosos. Assim, quando consideramos os primeiros sinais culturais da religião, já passamos do ponto das origens religiosas.
        Apesar desses desafios formidáveis, as tentativas de explicar a origem da religião em termos empíricos remontam pelo menos à História Natural da Religião de David Hume ([1757] 1956) e foi um projeto popular ao longo do século XIX. Sem menosprezar ou desconsiderar qualquer uma das contribuições desses primeiros pesquisadores, acredito que foi apenas nas últimas décadas que desenvolvemos as ferramentas que podem nos dar uma chance justa de estabelecer uma explicação científica sobre as origens religiosas: psicologia evolutiva e ciência cognitiva. Essa, percebo, é uma afirmação um tanto controversa, que não defendo aqui.(6) Para os propósitos presentes, estou preocupado com a visão sobre as origens religiosas fornecida por esses métodos e as implicações para nossa compreensão da ética religiosa. Vários trabalhos importantes foram publicados nos últimos anos sobre esse tema. Esses tratamentos da evolução da religião não são completamente consistentes entre si, mas há alguns temas gerais que podemos destacar.
          No estudo das primeiras formas de sistemas religiosos, encontramos uma crença generalizada em agentes sobrenaturais. Esses agentes podem ser deuses, fantasmas ou espíritos animando o mundo natural. Embora muitas culturas, antigas e contemporâneas, não tracem a mesma linha nítida entre o natural e o sobrenatural como é familiar no pensamento religioso ocidental moderno, podemos rotular esses agentes de sobrenaturais na medida em que não funcionam da mesma maneira que representantes de categorias ontológicas naturais. Cientistas cognitivos argumentam que categorias ontológicas, como Animal, Pessoa, Planta e Artefato, têm funções importantes para organizar conceitualmente o mundo e gerar inferências sobre objetos que encontramos na experiência.(7) Por exemplo, uma pessoa pode não saber o que é um ocapi, mas se lhe disserem que ela poderia ver um no zoológico, ela provavelmente o classificaria como um animal. Considerando apenas isso, pode-se gerar uma série de crenças sobre essa criatura desconhecida: que ela respira, come, se movimenta por sua própria força, busca se reproduzir, tem um habitat, pode ser morta, pode ser vista e tocada e assim por diante. Na verdade, uma pessoa será capaz de gerar um grande e detalhado conjunto de crenças sobre essa criatura que nunca havia observado simplesmente colocando-a em uma categoria ontológica.
      Entidades religiosas também podem se encaixar em uma variedade de tais categorias, mas se distinguem por envolver expectativas contraintuitivas. Pascal Boyer escreve, “os conceitos religiosos invariavelmente incluem informações que são contraintuitivas em relação à categoria ativada” (2001, 65). Tais conceitos podem dizer respeito a seres semelhantes a humanos que são capazes de se tornarem invisíveis, animais não humanos com habilidades cognitivas semelhantes às humanas, ou objetos naturais, como riachos ou montanhas, que se diferenciam de riachos e montanhas típicos por possuírem certas capacidades. Como aponta o antropólogo Scott Atran, os deuses se enquadram na categoria ontológica de Pessoas, de modo que esse conceito gera ricas inferências sobre tais seres a partir das expectativas captadas por essa categoria. No entanto, esse conceito também contém claras crenças contraintuitivas. Atran escreve: “Deuses e outros seres sobrenaturais são sistematicamente diferentes de nós em alguns aspectos gerais (…) e são previsivelmente parecidos conosco em uma gama muito mais ampla de formas usuais” (2002, 93). Consideremos um exemplo claro – os deuses do Olimpo.
     Zeus se encaixa na categoria ontológica de Pessoa. Essa categorização gera certas crenças, consistentes com a categoria Pessoas, que podemos ver exemplificadas por Zeus. Ele come e bebe, busca satisfação sexual, esconde suas indiscrições da esposa ciumenta, afirma seu poder, se ofende quando insultado, pode ser enganado e assim por diante. O que distingue Zeus como um deus são as características contraintuitivas associadas a ele: ele nunca morre, ele pode controlar as forças da natureza, ele pode mudar sua forma e assim por diante.
    A crença na ação sobrenatural como exemplo contraintuitivo de categorias ontológicas naturais representa um nível primitivo de consciência religiosa sobre o qual crenças e rituais mais elaborados e formalizados são construídos. Stewart Guthrie (1993) forneceu um relato sobre a formação de tais crenças como resultado de respostas cognitivas naturais a estímulos indeterminados.
      Quando apresentada a um estímulo de origem obscura, digamos, um barulho do lado de fora de sua porta no meio da noite, a mente é apresentada a um desafio de como categorizar e, assim, responder a esse estímulo. É algo que pode ser ignorado ou exige uma resposta ativa? Guthrie argumenta que a estratégia mais segura é superinterpretar o estímulo, “descobrir o máximo de significado possível interpretando coisas e eventos com o modelo mais significativo” (1993, 61). Se você interpretar o ruído como um possível intruso, ficará motivado a investigar. Se for o vento soprando contra as persianas, você apenas desperdiçou alguma energia. No entanto, se você subinterpretar os estímulos (digamos, como o vento soprando contra as persianas), corre o risco de tratar um intruso como um ruído inofensivo e colocar em risco sua família e você mesmo. Durante a evolução humana, nossos ancestrais enfrentaram essas situações regularmente. O barulho à frente pode ser o vento farfalhando as folhas, ou pode ser um predador esperando para atacar. Diante disso, aqueles que superinterpretavam tinham mais chances de evitar o perigo. Isso proporcionou uma importante vantagem de sobrevivência. Somos todos descendentes de pessoas que, diante dessas escolhas, disseram: “Tigre!”.
     Guthrie fornece fartos exemplos para mostrar que essa estratégia cognitiva de superinterpretar estímulos continua sendo uma parte comum de nosso envolvimento com o mundo, enfatizando que isso não é resultado de um pensamento irracional ou de um pensamento desleixado e primitivo. Não é a mente errando, mas a mente fazendo uma tentativa racionalmente justificável de trazer coerência à experiência (1999, 89-90).
   Essa abordagem foi reforçada e refinada por psicólogos cognitivos que colocam a detecção da ação como uma parte importante de nossa caixa de ferramentas intelectuais. Os acontecimentos do mundo pedem uma interpretação para que possamos começar a responder a eles. A posição padrão de nossas mentes parece ser presumir ações, mesmo que o estímulo não se encaixe com nossa experiência comum enquanto agentes (Boyer, 2001, 145). Os exemplos contraintuitivos de ações que deuses e espíritos representam parecem resultar da estratégia evoluída da mente para dar sentido a estímulos subdeterminados ou indeterminados em um mundo perigoso e intrigante. Como Atran colocou, “[a] ação sobrenatural é o conceito mais culturalmente recorrente, cognitivamente relevante e evolutivamente convincente na religião. O conceito de agente sobrenatural é culturalmente derivado do esquema cognitivo inato, ‘módulos mentais’, para o reconhecimento e interpretação de agentes, como pessoas e animais” (2002, 57).
   Além disso, a natureza contraintuitiva dos agentes sobrenaturais, em vez de ser um obstáculo à sua aceitação como explicações, na verdade, parece contribuir para sua resiliência. Estudos mostram que os aspectos contraintuitivos dos agentes religiosos podem tornar as histórias religiosas mais resistentes à degradação ao longo do tempo, em relação a histórias mais intuitivas, e assim tornar essas histórias particularmente adequadas à transmissão de uma geração para a próxima (Atran, 2002, 100-107).
    Agentes sobrenaturais, ou deuses, aparecem, é claro, em muitas variações. A característica mais comum, se não universal, projetada em tais seres, no entanto, é uma mente (Boyer, 2001, 144), e isso tem implicações importantes. Em nossas interações cotidianas com outros agentes — isto é, pessoas — é crucial, como vimos, sermos capazes de distinguir trapaceiros em potencial de cooperadores em potencial. Fazer isso requer uma ampla gama de informações, inclusive sobre os estados mentais desses outros agentes – que informações eles têm, o que lhes falta, quais são suas intenções? Boyer argumenta que a capacidade de prever o comportamento dos outros é uma vantagem competitiva significativa e levou à evolução de uma “inteligência social hipertrofiada” em humanos (Boyer, 2001, 122; ver também Byrne e Whiten, 1988; Byrne, 1995). Esse sistema cognitivo afeta como as pessoas entendem a ação sobrenatural. Boyer aponta que concebemos os humanos como “agentes estratégicos de acesso limitado” (2001, 155). Ou seja, assumimos que outros não têm acesso a informações completas ou perfeitas relevantes para as interações sociais. Nossa informação é limitada e nossa capacidade de discernir a intenção de outra pessoa é falha, e essa limitação é mútua.
     Digamos, por exemplo, que eu queira evitar uma tarefa tediosa para aproveitar um belo dia de primavera, mas também quero evitar ser penalizado por essa escolha. Decido dizer à minha chefe que devo ficar em casa para cuidar de uma criança doente. Vejo isso como uma estratégia promissora, porque vejo minha chefe como uma agente estratégica com acesso limitado. Ou seja, assumo que ela não tem acesso à minha verdadeira intenção ou ao real estado de saúde do meu filho. Minha chefe, por sua vez, pode, aparentemente, me conceder o dia de bom grado, não porque acredita em mim, mas para dar uma tarefa selecionada a um concorrente sem meu conhecimento. Ela se sente confiante em fazer isso porque também me vê como um agente estratégico com acesso limitado.
       Pessoas de todo o mundo, no entanto, representam deuses como “agentes estratégicos com acesso total” (Boyer, 2001, 158). Ou seja, elas veem seus deuses ou ancestrais não necessariamente como oniscientes, mas como tendo acesso a todas as informações relevantes para determinadas interações sociais. Os deuses sabem que meu filho está saudável e está na escola e que pretendo passar o dia no estádio, assim como eles sabem que minha chefe é antipática e está tramando contra mim. Eles têm acesso a tudo o que é necessário para fazer um bom julgamento em qualquer situação particular. Nem todos os deuses podem ser representados como possuidores dessa qualidade, mas os que possuem serão de particular importância. Como Boyer diz: “[o]s deuses poderosos não são necessariamente os que importam; mas os que têm informações estratégicas sempre importam” (p. 160). Os seres que possuem tal traço estão em uma posição particularmente privilegiada para assumir um papel moral.
       Estamos agora prontos para fazer uma ponte entre a evolução da religião e a moralidade evolutiva.

A evolução das religiões morais

    A religião é muito mais do que a moralidade e, de fato, nem sempre se preocupa com a moralidade; os deuses não são necessariamente seres morais. No entanto, sob certas condições, a conexão entre moral e religião torna-se significativa. Como sugerido anteriormente, a religião pode desempenhar um papel na solução do problema da extensão dos mecanismos evolutivos da moralidade. Quanto maior e mais complexa uma sociedade se torna, maior a tentação de abandonar a cooperação social e maior a chance de fazê-lo com sucesso. Isso torna o sacrifício pelo bem social mais custoso e, mesmo para os socialmente conscientes, uma opção menos racional. O perigo dessa espiral fora de controle ameaça a sustentabilidade de tais sociedades. A religião parece fornecer um remédio para essa situação. Não é a única solução, mas tem sido uma das mais robustas.(8)
     A solução é simples de expor: os deuses, como agentes estratégicos de acesso total, ocupam um papel único que lhes permite detectar e punir trapaceiros e recompensar os cooperadores. Nas religiões morais, tais deuses são concebidos como “partes interessadas em escolhas morais” (Boyer, 2001, 172). Eles estão preocupados com interações sociais e plenamente cientes do comportamento e motivos dos envolvidos. A crença comunitária em tais seres, portanto, reduz o risco de cooperar e aumenta o custo de trapacear, tornando a detecção mais provável e a punição mais certa. Como Donald Bloom escreve: “[a]s religiões e outros conjuntos de crenças relevantes para a conduta humana, que podem ou não ser chamados de religião, surgirão como a estrutura para o sistema moral que encoraja a promoção da cooperação e a detecção e o desencorajamento da trapaça”. (2003, 28). A religião torna-se, então, o veículo para o código moral de uma sociedade, necessário para que essa sociedade continue a funcionar como uma unidade coesa à medida que cresce em tamanho e complexidade. Ela resolve o problema da extensão.
     Algumas pesquisas recentes fornecem dados sugestivos sobre essa proposta. Em um estudo sobre a relação entre densidade populacional e crença religiosa, Frans Roes e Michael Raymond (2003) encontraram uma correlação positiva e significativa entre o tamanho da sociedade e a crença em deuses moralizadores (ou seja, deuses que dão suporte à moralidade humana). Esses autores veem essa crença como uma adaptação que fornece a coesão que permite que as sociedades cresçam e, assim, superem outros grupos. É muito cedo para avaliar adequadamente a confiabilidade desse estudo, mas vale a pena notar que os autores veem seus dados como um endosso a uma visão da evolução religiosa consistente com as teorias morais de Alexander. Dado que Alexander desempenha um papel importante no presente ensaio, uma confirmação adicional de suas conclusões seria significativa.
     De qualquer forma, o estudo de Roes e Raymond está de acordo com o tratamento evolutivo da religião estabelecido por David Sloan Wilson em Darwin’s Cathedral (2002). Essa é uma importante contribuição para o estudo evolutivo da religião e da ética e abre novos caminhos que estou tentando desenvolver aqui. Para Wilson, os sistemas morais permitem que os grupos funcionem como unidades adaptativas. Grupos com vínculos morais eficazes terão uma vantagem na sobrevivência. Wilson aponta que os sistemas de crenças que podem internalizar o controle social são mais eficazes do que aqueles que dependem de controles externos. Um sistema de crença fictício, como representado pela religião, pode funcionar como um sistema de controle externo de baixo custo e pode ser mais prontamente internalizado do que um sistema baseado na realidade(7) (2002, 98-105).(9)
     A religião não apenas sustenta mecanismos morais evoluídos, fornecendo vigilância sobrenatural; ela também funciona, de modo poderoso, como um sinal de boa-vontade para cooperar. Como observado, é imperativo ser capaz de discriminar entre potenciais cooperadores e trapaceiros. À medida que as sociedades se tornam maiores e mais anônimas, isso se torna cada vez mais difícil. A crença em um deus moral visa essa dificuldade, mas apenas se tal crença for comumente compartilhada. Se você não acredita que um deus está observando você, você tem menos a temer por trapacear, e eu tenho mais a perder cooperando. Minha crença de que você será punido algum dia por sua falta de fé pouco me protege agora. Como posso confiar em você de modo a retribuir minha cooperação?
     Observou-se que os seres humanos desenvolveram uma ampla gama de maneiras de sinalizar um compromisso de cooperar para incentivar o comportamento cooperativo de outros, como sorrir e estender a mão (ver Frank, 1988; Nesse, 2001). No entanto, os humanos também possuem a capacidade de sinalizar enganosamente tal intenção – por exemplo, um sorriso falso e uma mão escondendo uma faca – então, é preciso ter cuidado com a sinceridade de tais sinais. Diante disso, avaliar sinais de comprometimento é uma tarefa importante. Uma boa regra para guiar essa tarefa é que quanto mais difícil for fingir um sinal de compromisso com a cooperação, mais confiável ele será. Como observa William Irons: “[p]ara que tais sinais de comprometimento sejam bem-sucedidos, devem ser difíceis de falsificar. Tudo permanecendo igual, quanto mais custoso for o sinal, menos provável que seja falso” (2001, 298).
     Rituais e regras religiosas podem funcionar como tais sinais difíceis de falsificar. De fato, Irons caracterizou a religião como um sinal de compromisso difícil de falsificar (1996; 2001). Irons aponta que as religiões são normalmente aprendidas ao longo de um longo período de tempo, suas tradições são muitas vezes suficientemente complexas, sendo difíceis de serem imitadas por um estranho, e seus rituais oferecem oportunidades para os membros monitorarem uns aos outros em busca de sinais de sinceridade. Esse é um processo custoso e demorado (2001, 298). Mostrar-se membro de uma religião sinaliza que já se fez uma contribuição significativa de tempo e energia para o grupo e se está disposto a seguir o código que rege o grupo. Isso sinaliza que alguém é um parceiro confiável nas interações sociais e pode ser confiável para retribuir. É claro que nem todos os rituais são sinais igualmente eficazes. Os rituais podem ser fáceis de falsificar ou pouco custosos para serem executados. Tais rituais, se não forem contrabalançados por rituais custosos, ameaçam enfraquecer a coesão social. Richard Sosis descobriu que “[r]estrições custosas têm um impacto positivo na longevidade das comunas religiosas, sugerindo que o aumento do nível de sacrifício imposto aos membros eleva o comprometimento do grupo” (Sosis e Alcorta, 2003, 268; ver também Sosis e Bressler, 2003).
    De uma perspectiva evolutiva, a moralidade religiosa fornece um veículo para estender os mecanismos evolutivos para a moralidade – seleção de parentesco e altruísmo recíproco. Além disso, servindo como sinais de compromisso difíceis de falsificar, as religiões funcionam para discriminar entre os membros do grupo (aqueles que investiram na religião e, portanto, podem ser confiáveis) e os membros fora do grupo (aqueles que não investiram na religião e, portanto, não podem ser confiáveis). Se esse é um relato preciso da evolução da moralidade religiosa, deve ser possível detectar essas preocupações evolutivas embutidas nas tradições morais religiosas e, assim, fundamentar esses sistemas éticos em uma matriz evolutiva. Um estudo mais abrangente é necessário, mas mesmo uma pesquisa superficial pode encontrar evidências que apoiem essa tese.

Ética religiosa evolutiva

    Para exemplificar, restrinjo a discussão, aqui, às tradições morais judaico-cristãs, embora eu afirme que ela poderia ser facilmente sustentada por uma apreciação do Islã. A tese deste ensaio será mais fortemente apoiada se puder ser estendida a outras tradições morais-religiosas; no entanto, mesmo que a discussão se limite às religiões monoteístas, dado o papel que essas tradições desempenham no mundo moderno, ela não será insignificante.
     É crucial reconhecer outra limitação. O judaísmo e o cristianismo têm tradições morais incrivelmente complexas, às vezes inconsistentes e em constante evolução. Nenhum tratamento abrangente foi planejado, ou mesmo seria possível, em um debate como este. Certamente, qualquer tratamento “abrangente” pode ser acusado de simplificação ou reducionismo. Ainda assim, algo significativo pode ser dito focando adequadamente a discussão. A abordagem, aqui, se preocupa com as bases das primeiras expressões dessas tradições morais, especificamente aquelas encontradas na Torá e nos Evangelhos. Isso não quer dizer que uma explicação evolutiva não possa ser estendida a desenvolvimentos posteriores, apenas que não tentamos isso aqui.
   O objetivo desta discussão é mostrar que uma abordagem evolutiva para entender as bases da ética religiosa é uma contribuição valiosa para tais estudos. Ao escolher princípios morais representativos que exemplificam uma lógica evolutiva, demonstro a plausibilidade dessa abordagem e seu potencial para lançar uma nova luz sobre essas questões. É claro que um aspecto importante da defesa de uma abordagem evolutiva é explicar os preceitos morais que não se encaixam imediatamente nesse esquema. Isso, no entanto, também deve esperar por um estudo mais abrangente. Faço sugestões sobre como lidar com tais contraexemplos,(10) mas a prioridade deve ser estabelecer a abordagem evolutiva como ferramenta teórica antes de refinar seu uso.
      Vejamos primeiro o judaísmo. Em nossa abordagem das Escrituras Judaicas, o foco está no cânon desenvolvido, ignorando as considerações sobre a datação dos vários livros e sua história de composição. Isso não é porque essas são preocupações que não têm importância. Certamente, o modelo evolutivo pode contribuir para a compreensão sócio-histórica dessas questões. O foco, aqui, está nas histórias contadas e aprendidas pelas antigas comunidades judaicas. Para fins de discussão, podemos presumir que essa comunidade seja pós-exílica, de modo a minimizar as preocupações com datações. A presente discussão também evita questões de historicidade dos patriarcas ou do Êxodo, mas, se fosse feita uma interpretação estritamente literal de tais histórias, a necessidade de qualquer análise, seja evolutiva ou literária, seria evitada.
       Começando com as histórias dos patriarcas, podemos vê-las como encarnações da lógica da seleção de parentesco. Os judeus são todos filhos de Abraão. “Israel” não é meramente o lar ancestral do povo judeu (legado por Deus), mas foi o pai das doze tribos. Todos os judeus, através de sua linhagem tribal, são membros de uma família estendida. Essa família estendida é a base do judaísmo e da moralidade judaica. É a base, mas é claro que não o todo. Como vimos, a seleção de parentesco pode fazer muito para unir uma sociedade complexa. Ao nos voltarmos para a Lei Mosaica, podemos ver, pelo menos em parte, que ela funciona para estender a força dessa ética tribal básica.
     A Lei começa estabelecendo a preeminência do Deus hebreu sobre todos os outros deuses e conectando a prosperidade da comunidade à obediência a Deus e à lei. “Eu, o SENHOR, seu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, mas faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Êxodo 20:5-6). Esse jugo da prosperidade comunal à obediência à Lei de Deus é a característica definidora do relacionamento entre Deus e o povo escolhido de Deus e serve à função de fortalecer os laços sociais com a sanção divina. Uma comunidade não pode sobreviver e prosperar sem um compromisso compartilhado com um sistema moral. Os antigos hebreus abordaram o problema da extensão colocado pelos relatos evolutivos da moralidade estabelecendo a ideia de uma relação de aliança, que incorpora e reforça a lógica da moralidade evolutiva.
    Ao lermos as regras específicas estabelecidas na Lei, o que encontramos são regras não tanto para a purificação espiritual quanto para a cooperação social. Vemos proibições contra assassinato, adultério, roubo e perjúrio (Êxodo 20:13-16). Nos é ordenado: “[n]ão cobice a casa do seu próximo. Não cobice a mulher do seu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo.” (20:17) – tudo isso pode ser justificado por motivos puramente práticos como requisitos mínimos para a vida social.
    Isso, é claro, não prova nada contra uma autoria divina. Certamente podemos imaginar Deus legislando apenas aquelas regras melhor projetadas para garantir a paz entre os vizinhos. No entanto, em certas leis, vemos um nível de especificidade mais adequado a um código civil do que a um guia de perfeição moral. Isso é o que se espera de uma ética religiosa que, em última análise, funciona como um laço social. Por exemplo, encontramos esta lei muito particular para lidar com um dono de um boi indisciplinado:

Se um boi chifrar um homem ou uma mulher, e a pessoa morrer, o boi deverá ser morto a pedradas, e ninguém comerá a sua carne. Mas o dono do boi não será castigado. Porém, se o boi tinha o costume de chifrar as pessoas, e o seu dono sabia disso e não o prendeu (…) o seu dono também será morto. Quer tenha chifrado um filho, quer tenha chifrado uma filha, esse julgamento lhe será aplicado. Se o boi chifrar um escravo, homem ou mulher, dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor destes, e o boi será apedrejado. (Êxodo 21:28–32)
                                  

      Como um regulamento civil, isso é sensato e justo. Ele tenta levar em conta ambas as partes em uma disputa potencial e administrar a justiça proporcional à situação. Esse tipo de regulamentação, por mais sem glamour e mundana que possa ser, é fundamental para manter um senso de reciprocidade dentro de uma comunidade. Como preceito de uma lei moral superior, no entanto, pode-se admirar a aceitação inquestionável da escravidão e a comercialização implícita da carne humana expressa na compensação por um escravo chifrado. Mas observe que um escravo não é considerado parte da comunidade. Um escravo não é avaliado quanto ao potencial de cooperar e retribuir a cooperação. Um escravo é uma posse que é tratada, ainda que benignamente, por meio de coerção. O dano causado a um escravo ameaça a coesão social pelo dano causado ao seu dono, e é disso que se trata.(11)
    Também encontramos muitos aspectos na Lei que tentam manter o relacionamento pactual como central para a vida judaica. A circuncisão, o sabá e as leis alimentares e de purificação servem para ligar o povo ao seu Deus, mas também separam claramente a comunidade judaica de outras culturas mediterrâneas antigas. Esses são rituais custosos e demorados. A circuncisão sinaliza a participação vitalícia no grupo ou, em um novo membro, um compromisso com o grupo, cujo custo dificilmente será assumido levianamente. As Leis Kosher e rituais de purificação oferecem ampla oportunidade para a avaliação pública do compromisso; devido à complexidade de muitas dessas práticas, dominá-las requer uma imersão de longo prazo na tradição. O sabá pode não ser tão custoso quanto a circuncisão ou tão complexo quanto as leis alimentares, mas a punição por não dominar esse sinal de compromisso – a morte – destaca seu valor como medida de compromisso. Diante disso, tais práticas, como sinais de compromisso com o grupo difíceis de falsificar, identificam aqueles que podem ser confiáveis ​​para cooperar e aqueles que podem ficar tentados a desertar.
      Ao considerar o cristianismo, estamos diante de uma situação mais complexa. Esse é o resultado não de qualquer diferença qualitativa entre a ética judaica e a cristã, mas de um sentido mais fluido e dinâmico do que constitui uma comunidade. O cristianismo começou como uma seita dentro do judaísmo do primeiro século, mas se desenvolveu em uma religião cosmopolita e helenizada. Os ensinamentos morais do cristianismo refletem as tensões, contradições e conflitos que caracterizaram esse processo histórico. Por exemplo, em Lucas 10:25-37, Jesus, depois de declarar que “Ame o teu próximo” é um requisito moral central, é perguntado “e quem é o meu próximo?” Essa questão é significativa não apenas porque procura estabelecer os limites da comunidade moral, mas porque expressa confusão sobre esses limites. Essa confusão moral é característica de sociedades grandes, complexas e cada vez mais anônimas e seria inconcebível na maioria das sociedades tribais. Jesus responde com a história do Bom Samaritano em que o herói é um membro de um grupo ultrajado que para a fim de ajudar um estranho em necessidade, enquanto dois personagens que deveriam ser modelos morais (um sacerdote e um levita) ignoram o sofrimento de um colega judeu. A parábola indica que uma moralidade tribal não é mais adequada; os limites do grupo estão sendo recalibrados. O fato de que eles estão sendo recalibrados, e não apagados, será abordado em breve.
      Isso também ilustra a dificuldade em avaliar a “ética cristã” como se fosse um sistema unificado e consistente. Essa famosa parábola é encontrada apenas no Evangelho de Lucas. Os anteriores, Marcos e Mateus, não a contêm. Isso é revelador porque Lucas geralmente é reconhecido como destinado a um público mais gentio do que o de Marcos ou o de Mateus e, portanto, está mais preocupado em estender os limites da comunidade moral. Cada um dos Evangelhos apresenta uma mensagem destinada a falar a uma audiência com preocupações específicas. As diferenças entre eles não são tão grandes que impedissem a igreja primitiva de conceder todos os quatro status canônicos, mas são significativas o suficiente para advertir contra uma análise que confunda os quatro em um único sistema moral.
    Uma análise evolutiva da ética cristã primitiva, portanto, requer uma consideração muito mais específica e detalhada da história do desenvolvimento do que eu forneço aqui. Ainda assim, podemos extrair exemplos dos Evangelhos canônicos que oferecem suporte prima facie para um relato evolutivo. Para simplificar a discussão, restrinjo meus exemplos ao Evangelho de Mateus.
     Podemos prosseguir para o cristianismo considerando como Jesus resume a mensagem moral da Lei mosaica. Em Mateus 7:12, Jesus declara: “[p]ortanto, tudo quanto quereis que as pessoas vos façam, assim fazei-o vós também a elas, pois essa é a Lei e os ensinamentos do Profetas”. Mais tarde, quando solicitado a identificar o maior dos mandamentos da Lei, Jesus responde: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os ensinamentos dos Profetas.” (Mateus 22:37–40). “Faça aos outros” é a expressão clássica do altruísmo recíproco. Esse princípio central da moralidade evolutiva é aqui declarado por Jesus como a base de todos os ensinamentos da Lei Judaica e a regra moral básica para os cristãos. De maneira significativa, ele está subordinado a apenas um outro mandamento, uma completa devoção a Deus – o que é consistente com a lógica evolutiva da ética religiosa. Deus serve para defender as leis que unem a sociedade e permite que o altruísmo recíproco funcione em uma grande sociedade complexa. Esse mandamento supremo sinaliza um compromisso absoluto com o ser que supervisiona o bem do grupo e, portanto, é um sinal de compromisso com esse grupo.
     Essa análise, no entanto, pode gerar uma preocupação. Identificar “Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você” com altruísmo recíproco pode ser questionado, pois o altruísmo recíproco parece exigir “faça aos outros o que eles fizeram a você”. Essa é uma objeção importante. Se ela pode ou não ser respondida, depende de como lemos ambas as prescrições. A objeção pode ser respondida da seguinte forma: há estudos que indicam que o desenvolvimento do altruísmo funciona melhor se começarmos com o altruísmo como a posição padrão – ou seja, entrar em interações com vontade de cooperar – e basear as interações futuras no resultado. Isso foi demonstrado por meio de simulações de computador em experimentos projetados por Robert Axelrod (1984), que descobriu que uma estratégia “olho por olho” era mais bem-sucedida em maximizar os benefícios individuais a partir das interações sociais. O altruísmo não pode decolar a menos que haja uma disposição inicial de correr o risco de ser enganado. Essencialmente, é melhor começar com “faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”. Portanto, em acordo com o posicionamento inicial em relação a essa regra, Jesus está dando conselhos evolutivamente sólidos e defendendo uma postura moral apoiada pela teoria dos jogos evolutiva – ou seja, se todos adotassem a cooperação como o posicionamento padrão, haveria pouca necessidade de quaisquer outras leis. Nesse sentido, então, a objeção à identificação da regra de ouro com o altruísmo recíproco pode ser rejeitada. “Faça aos outros” é o primeiro movimento, o posicionamento padrão, em abordagens evolutivas de altruísmo.
   Ainda assim, um opositor pode apontar que mesmo que “faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você” seja o primeiro movimento, todos os movimentos subsequentes são governados por “faça aos outros o que eles fizeram a você”, e isso parece estar em desacordo com a mensagem de Jesus, expressa por suas admoestações para “amar seus inimigos” (Mateus 5:44) e “Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra” (Mateus 5:39) – conselho certamente em desacordo com os princípios do altruísmo recíproco. De fato, foi sugerido que essa postura moral representa um “protesto contra o princípio da seleção [natural]” (Theissen, 1984, 112; ver também Hefner, 1996). Como uma abordagem evolutiva pode responder a isso?
   Há duas respostas, e ambas são importantes para uma apreciação mais completa de um estudo evolutivo da ética. Uma é admitir que Jesus está, aqui, indo além das restrições da lógica moral evolutiva. Isso expõe uma importante limitação, embora não uma refutação, da moralidade evolutiva. Uma abordagem evolutiva da moralidade não deve ser entendida como algo que implica em determinismo biológico. Ela não nega a possibilidade de resistir a essas predisposições cognitivas/emocionais ou rejeita a inovação moral. A complexidade de nosso mundo social e a flexibilidade de nossas habilidades cognitivas permitem um elemento de criatividade moral. Nos ensinamentos de Jesus, vemos uma tentativa de ampliar nossa imaginação moral. Pode-se argumentar que o que caracteriza os profetas morais na história humana é sua capacidade de articular uma visão moral que vai contra nossas predisposições arraigadas.
    Uma segunda resposta é apontar que, como exortação moral, o ensinamento de Jesus pode ir além da lógica evolutiva, mas, como guia de comportamento, é a lógica evolutiva que muitas vezes domina. Embora esse seja um ponto reconhecidamente controverso, eu diria que a história do cristianismo está repleta de exemplos (como as Cruzadas, a Inquisição e a perseguição a hereges e a judeus) que falam sobre o poder da lógica evolutiva subjacente de esmagar tentativas de desenvolver atitudes morais contrárias a ela (por exemplo, “dar a outra face”). A resposta dos cristãos, na história, aos inimigos e aos ataques muitas vezes esteve muito mais alinhada com a psicologia da moralidade evolutiva do que com esses ensinamentos particulares de Jesus. Isso não é tanto uma condenação do cristianismo, mas uma lição sobre a dificuldade de ir além dessas predisposições morais evolutivamente arraigadas. Até o próprio Jesus foi vítima dessas predisposições, como podemos ver quando ele condena aqueles que se recusam a aceitar seus ensinamentos (Mateus 10:15). Assim, o uso da regra de ouro por Jesus é consistente com uma análise evolutiva, mesmo que essa análise não permita uma simples identificação dos dois princípios (“Faça aos outros” e altruísmo recíproco).
    A moralidade cristã também está repleta de imagens para encorajar a seleção de parentesco. Somos todos filhos de Deus, de modo que os membros associados são irmãos e irmãs, bem como vizinhos (“todos vós sois irmãos… porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus”, Mateus 23:8–9). No entanto, podemos encontrar evidências de uma confusão sobre os limites morais e a tentativa do cristianismo de esclarecer e ampliar a comunidade moral. Lemos sobre uma ocasião em que Jesus estava ensinando e foi informado de que sua mãe e seus irmãos tinham vindo falar com ele. Jesus respondeu: “Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos?’ E, estendendo a mão para seus discípulos, disse: ‘Eis aqui minha mãe e meus irmãos; Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe.’” (Mateus 12:46–50). Essa é uma extensão radical da comunidade moral, mas é formulada de uma forma que tira proveito de uma predisposição moral evolutivamente arraigada em relação aos parentes. Ao longo dos Evangelhos, Jesus usa as relações de parentesco como modelos para exemplificar as obrigações morais. Nessa passagem, ele define parentes como aqueles que seguem a vontade de Deus. Como a vontade de Deus representa os laços morais da sociedade, o parentesco, agora, é determinado não pelo sangue, mas pela disposição em obedecer a essa moralidade. A prontidão para apoiar e ajudar um membro da família, agora, deve ser estendida àqueles que sinalizam compromisso com a comunidade por sua devoção a Deus. Elaine Pagels escreve: “[a] inclusão no reino de Deus depende, então, não de ser membro de Israel, mas da justiça combinada com generosidade e compaixão. A etnicidade como critério desapareceu” (1995, 86).
    Os primeiros cristãos também desenvolveram uma variedade de maneiras de sinalizar sua identidade com o grupo e sua disposição em retribuir atos de altruísmo. Sua rejeição da circuncisão e das leis alimentares distinguiam os cristãos de seu grupo de parentes e colegas monoteístas, os judeus, enquanto o compartilhamento da Eucaristia e a recusa em se sacrificar aos deuses romanos os separavam de seus vizinhos pagãos. Esse último ato serviu como um sinal de compromisso muito eficaz, difícil de falsificar, dadas as consequências muitas vezes drásticas que se seguiram.(12)
    Até agora, vimos a moralidade como um meio de estabelecer um senso de comunidade e um código de comportamento intragrupal. Ao servir a essa função, a moralidade também identifica um grupo externo e implica uma ética do grupo externo. A principal consideração dentro de um grupo é promover o comportamento pró-social, garantindo a reciprocidade entre os membros desse grupo. O outro lado dessa associação é, obviamente, a exclusão. Se você não é da família ou vizinho, você é um estranho. Pessoas de fora não estão envolvidas no grupo e, portanto, têm pouca motivação para cooperar ou para retribuir a cooperação. Portanto, elas colocam em risco a comunidade. Para toda a moralidade construtiva encontrada na religião, encontramos um lugar igualmente proeminente para advertências contra estranhos.
    Para explorar esse outro lado da moralidade, vamos considerar a regra contra matar. No Monte Sinai, Deus consagra “Não matarás” como uma ordem divina (Êxodo 20:13), mas a primeira ordem que Moisés dá ao descer da montanha é para a execução daqueles que caíram em pecado enquanto ele estava fora:

Então Moisés pôs-se à porta do acampamento e disse: ‘Quem estiver do lado do Senhor, venha a mim’. Então se juntaram a ele todos os filhos de Levi. E disse-lhes: ‘Assim diz o Senhor Deus de Israel: ‘Cada um pegue a sua espada e vá pelo acampamento, de porta em porta, matando seus parentes, os seus amigos e os seus vizinhos’. E os filhos de Levi obedeceram à ordem de Moisés e mataram, naquele dia, mais ou menos três mil homens. Moisés disse aos filhos de Levi: ‘Hoje vocês se consagraram como sacerdotes para o serviço do Deus eterno…” (Êxodo 32:26–29)

     De fato, em toda a Lei mosaica encontramos inúmeras ações que devem ser punidas com a morte. Não apenas os assassinos devem sofrer a pena de morte, mas também aqueles que cometem adultério (Levítico 20:10), bestialidade (Êxodo 22:19) ou blasfêmia (Levítico 24:16) e aqueles que profanam o sabá (Êxodo 31:14) ou amaldiçoam seus pais (Êxodo 21:17) — para citar apenas algumas.
     Depois de receber a lei e comunicá-la ao povo, Moisés então conduz os hebreus no que pode ser descrito como uma jornada encharcada de sangue para a terra prometida. Dizem-nos, por exemplo, que quando Deus entregou a terra de Hesbom aos hebreus, eles “destruíram completamente todas as cidades, homens, mulheres e crianças; não deixamos ninguém vivo” (Deuteronômio 2:34). Eles, então, foram para a terra de Basã, onde “o feriram [o rei] e mataram todos [o seu exército], até que nenhum sobrevivente lhe restasse”. A passagem continua: “[e], em seguida, nós tomamos todas as suas cidades – não havia uma cidade que não tivéssemos tomado – sessenta cidades… E nós as destruímos completamente, como fizemos com Seom, rei de Hesbom, e matamos todos os homens, mulheres e crianças” (Deuteronômio 3:3-6).
     No caso de sermos tentados a pensar que a extensão da matança foi um excesso causado pelo calor da batalha, em vez de uma matança divinamente sancionada, lemos em Números sobre um caso em que Moisés castiga com raiva os generais do exército por não matarem todos os habitantes de uma cidade. Quando derrotaram os midianitas, os hebreus levaram cativas as mulheres e as crianças depois de matar todos os homens. Moisés, nos é dito, “estava zangado com os oficiais do exército”, perguntando-lhes: “Vocês deixaram todas as mulheres viverem?” (Números 30:14-15). Ele corrige o erro instruindo-os assim: “[a]gora, pois, matai todo o homem entre as crianças, e matai toda a mulher que conheceu algum homem, deitando-se com ele. Porém, todas as meninas que não conheceram algum homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós. (Números 31:17–18).
     O que podemos tirar de tudo isso? Certamente somos tentados a acusar a Lei mosaica de hipocrisia; aspectos dela afrontam nosso senso de retidão moral. Isso, há muito, apresenta um problema para aqueles que reivindicam autoria divina desses atos. No entanto, da perspectiva evolutiva desenvolvida aqui, há menos motivos para se surpreender.
    A moralidade se desenvolve como uma ferramenta para promover a coesão dentro do grupo e, assim, capacitar melhor os indivíduos a melhorar sua aptidão genética. Essa coesão também funciona como uma vantagem adaptativa na competição com outros grupos (Alexander, 1987; Wilson, 2002). A moralidade é um código de como tratar aqueles do meu grupo; ela não se estende a quem está fora do grupo. Como esses outros não estão vinculados ao mesmo código, eles devem ser tratados como trapaceiros em potencial. Aqueles de fora do grupo são, de fato, uma ameaça potencial à sobrevivência do meu grupo. As pessoas que os hebreus encontraram em sua jornada eram obstáculos que precisavam ser superados no interesse da sobrevivência do grupo. Dessa maneira, a injunção moral “não matarás” não se aplicava a eles (ver também Hartung, 2002).
    A lógica evolutiva por trás dessas ações talvez seja mais aparente nas instruções de Moisés para poupar as virgens entre os prisioneiros midianitas. Isso claramente não foi feito por compaixão, pois ele não tinha escrúpulos em ordenar a morte de mulheres mais velhas e crianças do sexo masculino. Nos termos brutos de aptidão reprodutiva, as meninas eram os principais recursos para a propagação da comunidade, enquanto as mulheres e os meninos mais velhos teriam sido um dreno para os recursos de um povo nômade. As ações de Moisés parecem friamente calculistas para os leitores modernos e não o que se esperaria de um herói religioso, mas na medida em que a moralidade serve a fins evolutivos, Moisés cumpriu habilmente seu papel como líder moral de sua comunidade.
     Embora isso possa explicar o comportamento letal em relação àqueles do grupo externo, vimos que “não matarás” também foi frequentemente suspenso dentro do grupo. No entanto, a mesma lógica apoia a imposição da pena de morte aos membros do próprio grupo. A moralidade estabelece os limites do comportamento apropriado dentro do grupo. Também serve como um sinal de compromisso com o grupo. Quebrar esse código apresenta dois problemas que precisam ser resolvidos. Por um lado, digamos, no caso de roubo, cria um desequilíbrio que precisa ser corrigido. Mais importante, talvez, é que isso sinaliza uma ruptura com o grupo que pode colocar o perpetrador na categoria de grupo externo. Como tal, o ex-membro do grupo torna-se uma ameaça potencial e está fora dos limites do tratamento moral. Algumas dessas quebras podem ser corrigidas pela disposição em aceitar a punição do grupo, mas outras, não.
     Podemos ver essa lógica em ação olhando para dois crimes capitais muito diferentes: o assassinato e a profanação do sabá. No caso de assassinato, a pena de morte visa restabelecer o equilíbrio rompido pelo crime. “Olho por olho” é o outro lado de “Faça aos outros”, então, essa punição decorre da lógica do altruísmo recíproco. No entanto, ao profanar o sabá, nenhum membro do grupo é prejudicado. Não há desequilíbrio a ser corrigido. Para entender a punição por esse crime, precisamos lembrar que a observância do sabá serve como um sinal de compromisso com o grupo e marca um indivíduo como alguém que pode ser confiável para retribuir. Ao profanar o sabá, a pessoa está sinalizando que optou por sair desse arranjo e não é mais um membro confiável da comunidade. Na lógica da moralidade evolutiva, ou você está no grupo ou está fora do grupo, e, se estiver fora, as leis morais não se aplicam mais a você.(13)
     Na visão moral pós-iluminista, um princípio contra matar deveria ser aplicado categoricamente e, assim, proibir tanto a pena de morte (pelo menos para crimes não violentos), quanto o massacre de crianças inocentes – por essa razão, a acusação de hipocrisia contra os antigos hebreus. De uma visão evolutiva da moralidade, não há hipocrisia. “Não matarás” é uma regra moral e, como tal, se aplica a todos os membros do grupo. Aqueles que estão fora do grupo, sejam membros de um grupo concorrente ou membros decaídos da comunidade, não se enquadram na extensão dessa regra.
    Antes de deixar essa discussão, uma questão de tradução precisa ser abordada. Foi observado que “Não matarás” – a tradução tradicional encontrada em muitas versões cristãs da Bíblia – é uma tradução incorreta; ela deve ser lida como “Não assassinarás”. Isso altera algum dos argumentos anteriores? Acho que não, pelo menos não em nenhum sentido significativo. Que distinção pode ser feita entre matar e assassinar? Parece que a leitura menos controversa é a de que matar é tirar uma vida, enquanto assassinar também é tirar uma vida, mas com a conotação adicional de que tal ato é proibido pelas normas ou leis da sociedade. Um soldado que tira a vida de um soldado inimigo no decorrer de uma batalha matou, mas não será acusado de assassinato. Um agente penitenciário que aperta o botão que injeta um coquetel letal de drogas nas veias de um condenado tirou uma vida, mas não é considerado um assassino. Portanto, “não matarás” é uma proibição mais categórica contra tirar uma vida do que “não assassinarás”.
    Como isso afeta nossa discussão? Uma implicação importante é que a acusação de hipocrisia é infundada. Se o mandamento é “Não assassinarás”, impor a pena de morte aos blasfemos e afins não é hipocrisia porque tal ação não é assassinato. Matar aqueles que violam certos mandamentos da lei e matar aqueles que traem o grupo ou pessoas de fora que se opõem ao grupo são instâncias divinamente sancionadas de tirar uma vida e, por definição, não são casos de assassinato.
   Ainda assim, outras questões surgem quando interpretamos a lei como “Não assassinarás”. Por um lado, isso torna a lei mundana, pois apenas nos diz para não cometermos assassinatos que não foram sancionados. Tal proibição é um traço quase universal das sociedades organizadas, embora haja uma diversidade de maneiras de determinar quais assassinatos devem ser sancionados. Isso também expõe a natureza tautológica da lei: Não assassinarás = É errado matar aqueles que Deus/sociedade considera errado matar. “Você não deve matar” seria um comando muito mais substantivo e moralmente único (encontrado em outros lugares, na época, que eu saiba, apenas no budismo).
     No entanto, do ponto de vista de uma análise evolutiva, as coisas não mudam em nada. O fato de que “Não assassinarás” é uma proibição social quase universal é consistente com uma compreensão evolutiva do desenvolvimento biocultural. Mais pertinente é como o comando “Não assassinarás” deve ser aplicado – quais mortes são sancionadas e, portanto, não são “assassinatos”, e quais são proibidas. Aqui, podemos voltar à discussão anterior sem quaisquer retificações, pois, como argumentado, a distinção entre matar de forma sancionada e de forma proibida segue as linhas apoiadas pela lógica da moralidade evolutiva.
    Ao nos voltarmos para o cristianismo, devemos novamente ser sensíveis ao contexto social no qual ele se desenvolveu. Os primeiros cristãos eram um grupo minoritário dentro de um grupo minoritário em um mundo dominado por uma cultura romano-helenística. Como vimos, isso tornou a questão de esclarecer os limites uma preocupação vital para os cristãos. Embora os cristãos estabeleçam esses limites de maneira diferente de seus companheiros monoteístas, eles demonstraram a mesma divisão dentro/fora do grupo que encontramos em nossa discussão sobre o judaísmo. Uma expressão clara dessa abordagem dicotômica é encontrada na parábola de Jesus sobre as ovelhas e os bodes. Falando sobre o juízo final, Jesus diz:

Diante dele serão reunidas todas as nações, e ele as separará umas das outras como o pastor separa as ovelhas dos bodes, e porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, herdai o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (…) Então dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. (Mateus 25:32–41)(14)

     Particularmente notável sobre essa passagem é a severidade do tratamento para aqueles de fora do grupo. Em nossos exemplos das Escrituras Judaicas, aqueles de fora do grupo apenas sofreram a morte; aqui, eles sofrem tormento eterno. O cristianismo elevou as apostas por estar do lado errado da divisão. Ao longo dos Evangelhos, os oponentes dos cristãos são categorizados não apenas como perigosos ou maus, mas como aliados do diabo. Pagels aponta que “no mundo antigo, até onde eu sei, são apenas essênios e cristãos que realmente escalam o conflito com seus oponentes ao nível da guerra cósmica” (1995, 84).
       Compreender essa escalada é uma tarefa complicada e merece maior atenção do que é dada aqui,(15) mas deixe-me sugerir uma explicação enraizada na lógica evolutiva. Tanto os primeiros cristãos quanto os essênios eram seitas radicais e minoritárias dentro do judaísmo do primeiro século e, como tal, tinham pouco poder temporal para exercer em defesa de seu grupo e, portanto, eram menos capazes de punir aqueles que desertavam. Se o custo da deserção for baixo, a probabilidade de deserção aumenta. Isso eleva o custo da cooperação. Um grupo não pode sobreviver em tais circunstâncias. A retribuição divina assume, então, um papel mais essencial. Os indivíduos poderiam, teoricamente, desfrutar dos benefícios de pertencer a uma comunidade cristã, depois desertar antes de retribuir e ser protegidos da punição ao serem absorvidos de volta pelo grupo majoritário mais poderoso. No entanto, ao fazê-lo, eles estavam, agora, se alinhando com o inimigo de Deus e não podiam ter esperança de escapar da justiça divina.
     Podemos entender essa mudança de uma punição física de oponentes para uma punição espiritual como um exemplo da mesma lógica moral evolutiva encontrada em nossa discussão sobre o judaísmo, aplicada às condições ambientais específicas do cristianismo primitivo, e não como um repúdio dessa lógica. Que isso seja assim pode ser apoiado pelo fato de que, no momento em que o cristianismo adquiriu o papel de grupo dominante dentro da sociedade romana, ele rapidamente recorreu aos meios mais familiares e mundanos de punir os desertores.(16)
      O papel da violência na religião é uma questão vital. As pessoas ficam intrigadas com a moralidade aparentemente paradoxal encontrada no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Os proponentes caracterizam essas religiões como religiões de paz e, então, lutam para explicar a evidência do contrário. De uma perspectiva evolutiva, não há paradoxo; na verdade, isso é exatamente o que se espera. A moralidade evolui como um meio de promover o comportamento pró-social dentro do grupo e para definir e defender os limites desse grupo. A religião, como expressão e extensão dessa moralidade, incorpora esses objetivos. Apesar das aspirações universalistas frequentemente invocadas por moralidades religiosas, suas histórias e seus textos desmentem suas origens evolutivas.

Conclusão

     Concluo com comentários sobre duas implicações de uma abordagem evolutiva para a moralidade religiosa. Primeiro, se os temas básicos da moralidade religiosa estão de acordo com a lógica da moralidade evolutiva, isso parece minar qualquer reivindicação de sanção divina para qualquer código moral particular (sem assim deslegitimar qualquer injunção moral particular). Se os ensinamentos morais da religião podem ser explicados como meios de promover a coesão do grupo e encorajar o comportamento pró-social e, portanto, tender a aumentar a aptidão individual, a adição de um legislador divino parece logicamente gratuita. O medo de que uma teoria moral evolutiva solape a defesa de uma ética transcendente tem fundamento. Isso, no entanto, não invalida a moralidade, mesmo a moralidade religiosa.(17) Isso altera o status de tal moralidade. Em vez de serem coleções de mandamentos divinos, os sistemas morais são registros dos esforços de várias comunidades humanas enquanto se empenhavam para resolver os problemas da vida comunal e criar uma sociedade melhor. Como tal, eles são inestimáveis ​​para qualquer pessoa preocupada com a moralidade ou com o progresso social. Seu valor não é o de verdades conclusivas, mas o de experimentos morais que precisam ser avaliados por seus resultados. Uma compreensão mais completa da base evolutiva da religião e da moralidade melhorará nossa capacidade de avaliar esses resultados.
    Em segundo lugar, apesar desse rebaixamento do status da moralidade religiosa, uma abordagem evolutiva sugere um papel moral crucial para a religião desempenhar. Vivemos em sociedades incomparavelmente maiores e mais complexas do que aquelas que primeiro forjaram o vínculo entre religião e moral. O problema da extensão dos mecanismos morais evoluídos ainda precisa ser abordado. Existem soluções seculares para esse problema que podem substituir a religião? Isso parece uma questão em aberto. Não se trata da justificação racional de uma ética secular, mas da possibilidade de gerar um compromisso em larga escala com tal sistema ético. Uma leitura possível dessas histórias evolutivas é que a religião pode desempenhar um papel necessário na fundamentação da obrigação moral em grande escala. Para que uma moralidade secular funcione, pode ser necessário explorar os mesmos recursos emocionais e cognitivos acessados ​​pela religião.(18) Quer esses substitutos seculares possam ou não se tornar efetivos, é claro que a religião foi projetada para desempenhar esse papel.(19) Na verdade, para o bem ou para o mal, a religião desempenha esse papel, e, com toda a probabilidade, continuará a desempenhar, para uma vasta parcela da população global. Como a religião explora mecanismos psicológicos tão profundamente arraigados, ela pode servir para amplificar e canalizar as energias humanas em várias direções. Dado esse vasto poder de mobilizar as pessoas, para o bem e para o mal, e a posição central da religião em muitos dos desafios que enfrentamos hoje, é imperativo entender como a religião funciona. Os tópicos tratados neste ensaio merecem, portanto, uma investigação mais aprofundada.

Notas

 Os artigos sobre os tópicos tratados neste artigo foram apresentados no Mid-Atlantic AAR Annual Meeting, no New England Institute Conference on Cognitive Psychology, Evolutionary Psychology and Religion, e no Annual Meeting of the Society for the Scientific Study of Religion, todos em 2003. Agradeço a Chris DiCarlo, Arthur Dobrin, Robert Hinde, James Levy e Patricia Romano pelos comentários sobre as versões anteriores deste artigo e aos leitores anônimos da Zygon cuja resposta proporcionou a oportunidade de desenvolver algumas das implicações desta tese. 

(1) O estudo evolutivo da ética pode ser dividido em metodológico e normativo – com o metodológico indicando uma tentativa de explicar fenômenos morais como resultados de processos evolutivos, e com o normativo indicando a tentativa de derivar juízos éticos desses processos naturais. Meu trabalho, aqui, está mais preocupado com a ética evolutiva metodológica. Isso não deve ser entendido como implicando, no entanto, que haja uma divisão absoluta entre as duas abordagens ou que não haja implicações normativas da abordagem metodológica. Para uma discussão sobre isso, veja Teehan e DiCarlo, 2004. 

(2) Isso não deve ser interpretado como endosso de uma visão da evolução centrada no gene, embora eu acredite que há muito a ser dito sobre tal explicação. No entanto, a visão centrada no gene parece ser a mais restritiva em termos de explicação do altruísmo, de modo que a possibilidade de o altruísmo evoluir naturalmente será mais forte se puder ser desenvolvida de maneira consistente com essa abordagem. 

(3) Em termos evolutivos, a resposta à trapaça é o desenvolvimento de um conjunto de respostas emocionais contra os trapaceiros e a favor dos cooperadores. Ver Trivers, 1971; Frank, 1988. Isso fornece a base para os sistemas morais. 

(4) Exemplos de trabalhos com base evolutiva para a moralidade são Hamilton, 1964; Williams, 1966; Trivers, 1971; Dawkins, 1976; Axelrod, 1984; Alexander, 1987; Dennett, 1995; Ridley, 1996; e Hinde, 2002. Para uma discussão valiosa sobre detecção de trapaceiros e evolução cognitiva, ver Byrne e Whiten, 1988 e Byrne, 1995, especialmente caps. 12-15. Para outras discussões sobre a evolução do cérebro/mente, ver Gazzaniga, 1992; Barkow, Cosmides e Tooby, 1992; e Dennett, 1995, especialmente cap. 13. Isso, é claro, apenas arranha a superfície dos volumosos trabalhos sobre esses tópicos. 

(5) Isso não significa que as abordagens evolutivas não possam dizer mais nada sobre esses contra-exemplos patentes. Por exemplo, a teoria evolutiva parece oferecer a melhor explicação sobre as taxas dramaticamente elevadas de abuso infantil contra filhos adotivos/enteados em comparação com as taxas de descendentes naturais (ver Daly e Wilson, 1999). 

(6) É claro que a alegação precisa de defesa, e tal defesa seria essencial em um tratamento mais abrangente do que é feito aqui. Émile Durkheim, por exemplo, apresenta uma análise da religião que merece consideração em qualquer abordagem evolutiva (de fato, ele já figurou na literatura; ver Wilson, 2002). Apesar do valor de abordagens como a de Durkheim, qualquer tratamento empírico da religião que antecede a ciência moderna da mente será significativamente limitado por esse fato. 

(7) Para uma discussão detalhada, ver Boyer, 2001; Atran, 2002. 

(8) Uma variedade de estruturas políticas/legais também pode funcionar nesse papel. A religião não é uma estratégia necessária, mas, dada sua aplicação mundial e incrível poder de permanência, pode-se argumentar que é uma das mais eficazes e talvez seja um elemento importante em qualquer estratégia desse tipo. Um caso de teste para isso é o fenômeno da secularização. Nada do que foi dito aqui deve ser interpretado como negação da possibilidade de secularização da ética ou dos laços sociais. É, no entanto, uma questão interessante e importante de quão efetiva a secularização pode ser. 

(9) A abordagem de Wilson sobre a evolução e a religião é um exemplo do que ele chama de seleção multinível. Ou seja, ela vê a evolução agindo no nível do grupo, bem como no nível do indivíduo e do gene. A presente abordagem da ética religiosa é, como afirmado, neutra quanto à questão do nível de seleção, embora os mecanismos discutidos como subjacentes à ética religiosa não envolvam a seleção de grupo. Essa é uma questão importante para esclarecimentos futuros. 

(10) Permitam-me, agora, propor uma sugestão: foi sugerido que o “culto do martírio” dos primeiros cristãos não pode ser explicado por uma lógica evolutiva que está enraizada na melhoria da aptidão reprodutiva, seja em nível individual ou de grupo. Trata-se, prima facie, de um desafio ao modelo aqui proposto. No entanto, o martírio cristão é um exemplo particular do fenômeno mais geral de auto-sacrifício. As comunidades, muitas vezes, encorajam os indivíduos a estarem dispostos a fazer o sacrifício final. Estes são seus soldados, policiais e bombeiros, que voluntariamente se colocam em situações em que se espera que eles ofereçam suas vidas pelo bem do grupo. A sociedade retribui concedendo a esses indivíduos um status elevado enquanto vivem, que muitas vezes passa para as suas famílias depois de terem morrido. Esse é um exemplo de reciprocidade indireta (ver Alexander, 1987). Mártires cristãos não estavam sacrificando suas vidas “para que outros pudessem viver”, mas promovendo os interesses do grupo – sendo fiéis ao Deus daquele grupo – e sinalizando fortemente um compromisso com aquele grupo. Além disso, no contexto de um sentimento intensificado de perseguição, a demonização dos perseguidores pode ter sugerido a alguns que o martírio era necessário para a sobrevivência do grupo. Veja, por exemplo, a discussão de Pagels (1995) sobre Justino Mártir. Para uma discussão sobre uma forma moderna de martírio – homens-bomba – com uma perspectiva evolutiva, veja Atran, 2003. 

(11) Nada disso deve ser entendido como algo que desdenha o valor moral da Lei ou que nega a contribuição para o desenvolvimento moral da humanidade feita pelo pensamento judaico. Mesmo no caso da escravidão, a Bíblia estabelece limites morais para seu tratamento (Êxodo 21:20, 26-27). Mas também é interessante notar que, de acordo com a lógica da moralidade evolutiva, os escravos hebreus recebem direitos mais amplos e específicos (ver Êxodo 21:1-11). 

(12) Uma análise de rituais e cerimônias cristãs pode ser um tópico rico para uma análise evolutiva. Ver, por exemplo, McCauley e Lawson, 2002. 

(13) É claro que existem contraexemplos de consideração moral estendidos a estranhos que precisam ser levados em conta. Eles podem ser apenas exceções que comprovam a regra, mas pode haver uma maneira de subsumi-los sob a lógica da moralidade evolutiva. O próprio fato de haver injunções morais específicas que protegem estranhos pode ser sugestivo de uma predisposição moral subjacente dentro/fora do grupo. 

(14) Isso toca em um importante potencial contraexemplo: a retórica universalista encontrada no cristianismo. Se o cristianismo propõe a salvação para todos, isso não apaga a divisão dentro/fora do grupo essencial à tese deste ensaio? Essa é uma questão complexa, mas há boas razões para rejeitar a noção de que a retórica universalista do cristianismo representa uma ética universalista. O cristianismo expande as fronteiras da comunidade e rejeita a etnicidade como critério de adesão. Como tal, pode ser um grupo mais inclusivo (“pode ser”, pois há sentimentos universalistas encontrados no judaísmo, também), mas ainda é um grupo com requisitos de adesão, sinais de compromisso com outros membros e, como vemos aqui, consequências bastante severas por não ser membro. Se o universalismo significa que todos fazem parte do mesmo grupo porque não há grupos externos para fazer parte, muitos grupos podem ser reinterpretados como universalistas em motivação. Ainda assim, podemos encontrar tanto no judaísmo quanto no cristianismo elementos do universalismo que podem ser adaptados para fornecer a base de um sistema moral verdadeiramente universal. 

(15) Pagels (1995) fornece uma descrição detalhada e convincente dessa mudança quando aborda o desenvolvimento do personagem de Satanás. Minha discussão segue a descrição desenvolvida por Pagels, com a adição de uma perspectiva evolutiva. 

(16) Para uma discussão sobre o uso da violência e o papel do poder coercitivo do Estado no estabelecimento da ortodoxia e no combate à heresia (ou seja, a deserção do grupo), ver Smith, 1976 e Rubenstein, 2000. Particularmente instrutiva é a disputa muitas vezes sangrenta sobre a relação substantiva entre Deus o Pai e Deus o Filho, conhecida como a controvérsia ariana; Rubenstein fornece uma discussão detalhada sobre isso. 

(17) Para uma tentativa interessante de defender uma moralidade religiosa, especificamente a ética tomista, com as descobertas da moralidade evolutiva, ver Pope, 1994. Essa interessante discussão sobre a interação entre as moralidades evolutivas e religiosas rende importantes insights. Parece, no entanto, que as conclusões alcançadas por Pope, embora intrigantes, não dependem de uma visão de mundo transcendente para sua validade. 

(18) E. O. Wilson aborda essa questão em seu trabalho de 1998, Consilience. Wilson mostra uma apreciação e sensibilidade para a função da religião na experiência moral da humanidade, ao mesmo tempo em que se mantém fundamentado em uma visão de mundo naturalista. Ele propõe como desfecho ao embate entre religião e ciências uma consiliência que resulte na “secularização da epopeia humana e da própria religião” (1998, 290). Essa conclusão provocativa merece engajamento. Qualquer que seja a visão da conclusão de Wilson, seu projeto é um exemplo da tarefa que temos pela frente. 

(19) Patrick McNamara (2002) levanta uma preocupação semelhante com base nas descobertas de estudos neurológicos da experiência religiosa. Embora eu tenha reservas sobre algumas das implicações das conclusões de McNamara, estamos de acordo quanto à necessidade de explorar essa questão. 

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Citação bibliográfica deste artigo:

TEEHAN,  John. A base evolutiva da ética religiosa. Trad. Iago P. Silva, Maíra Bittencourt, Maria I. Baggio, Miécimo R. M. Júnior e Walter V. O. Silva. Boletim de História e Filosofia da Biologia, 17 (1), mar. 2023. Versão online disponível em: https://www.abfhib.org/boletins/boletim-hfb-volume-17-numero-1-marco-de-2023/traducao-de-artigo-a-base-evolutiva-da-etica-religiosa/. Acesso em: dd/mm/aaaa. [colocar a data de acesso à versão online]